terça-feira, 31 de março de 2009

O milionário



          O MILIONÁRIO
Geraldo é um sujeito de sorriso largo e folgazão, com testa grande, nariz de espanhol e cabelos espessos. Sua maior característica é uma capacidade crescente de dominar a adversidade. Malgrado algumas circunstâncias, foi sempre um afortunado, vitorioso no jogo da vida, capaz de grandes lances, tacadas e acertos. Além de feliz, bem-casado e pai premiado, a sorte ainda quis lhe sorrir com o brilho do níquel: aos 39 anos ficou milionário!
O milionário nasceu em solo gentil e berço esplêndido: era descendente de latifundiários da Coroa, antigos aristocratas-de-nariz-empinado do interior da “Província”. Seu avô fora, além de governante de terras, talentoso trombonista. Seu pai, apesar da distração, também frequentou a vida inteira as fileiras da bonança; seu filho foi considerado um Einstein, gênio irrepreensível da lógica e da ponderabilidade do tempo-espaço.
Apesar da bem-aventurança posterior, suas lutas começaram cedo. Aos quatro anos, perdeu a mãe, que morrera de febre puerperal ao dar à luz a pequena Cibele. Dois anos depois, uma terrível caxumba lhe desceu pelos testículos e quase pôs a perder sua futura e bem-sucedida descendência. Geraldo foi obrigado pela babá a usar um camisolão folgado e passar cinco dias e cinco noites em cima da cama. Ela dizia:
– Aquiete-se, menino! Se der febre nas suas bolas, adeus herdeiros pro Vovô Ludovico Klein!
E Geraldo, cordato como era, aceitou a bem-intencionada imposição de Elvira, passando férias forçadas de infância sobre a cama do quarto dos meninos da Fazenda Florença. Primeiro lance de sorte: a doença não lhe queimou a bolsa escrotal, e Geraldo, vinte anos depois, pôde ser pai de um robusto varão.
Ainda da infância, Geraldo guardou lembranças como o gosto do abio e a companhia de Fineza, a cachorra parda que o acompanhava em suas incursões diárias pelos mistérios de Florença.
Da juventude do futuro milionário, muito não se sabe. Circulam algumas histórias, porém, da primeira namorada... Esta se chamava Ivete, e queimou o coração do rapaz com seu olhar-verde-garrafa. Geraldo contava o gosto que experimentou com a primeira carta e o primeiro beijo. Ele costumava agradá-la com longas cartas de amor, para o que recorria aos dotes do tio Hermógenes, hábil escriba da família. Hermógenes enchia seis laudas de inspirados saudadismos e aiaiais, os quais muito valeram a Geraldo em suas noites de inverno passadas com Ivete, clandestinamente, no sobrado da velha Bernarda.
Uns três invernos depois, na noite de 24 de agosto de 1954 – quando completava 19 anos –, Geraldo ouviu no rádio que o presidente Getúlio Vargas se suicidara. Reflexivo, o rapaz perguntou-se sobre o que queria para sua própria vida, e, num ímpeto de sabedoria decidida, resolveu deixar Florença e buscar a novidade urbana do Rio de Janeiro.
Uma vez na Cidade Maravilhosa, eram várias as atrações que lhe apeteciam a vontade jovem: o Maracanã lotado – Flamengo X Botafogo: 2X2 – e aqueles lugares com uma tabuleta na porta: Entre sem bater. Aliás, desde que descobrira por lá aqueles salões de franca entrada, com tantas opções de diversão, viu como o Rio era, mesmo, bem mais alegre e animado que o salão de baile da fazenda. O que deixou o interiorano mais impressionado, no entanto, foi a sua estreia num cassino clandestino, onde derrubou a banca na primeira noite. Os novos fatos só vinham reforçar sua sorte inominável em todos os jogos anteriores: em casa, no colégio, no Florentino F.C e nos prêmios da quermesse, sempre ganhou tudo: invariavelmente, arrebanhava para si até a sorte alheia! Mas no tal cassino – naquele show permanente de fichas, mulheres e luxo –, ele se sentia no melhor lugar do mundo. Sem dúvida, vir para o Rio tinha sido a sua melhor tacada. Não fosse pelo “mal sentimental que me sucedeu”, conforme posteriormente relatado ao Dr. Brás Infante, psicanalista, aquilo tudo seria mesmo uma vida perfeita!
No início da vida no Rio de Janeiro, Geraldo foi morar na pensão de uma portuguesa, onde conheceu a bela Cecília, filha da proprietária. Esta, D. Maria de Sá, era uma diaba de bigodes com sotaque lusitano. A moça era linda, mas a mãe era como o demo de saias numa temporada na Terra depois de dois séculos de inferno. D. Maria perseguiu Geraldo, quase a ponto de impedir o romance dos dois. Mas a moça estava apaixonada, e o rapaz era tinhoso. Além disso – reitere-se! – Geraldo carregava consigo a marca da sorte. Praticamente tudo que queria lhe vinha ao encontro. E não parecia ser diferente com a linda portuguesa de pele alva, cabelos avermelhados e olhos intensamente azuis. Ao contemplá-la, Geraldo pensava haver encontrado o Céu.
Geraldo nunca soube se ele havia seduzido Cecília ou se ela o havia seduzido. Ocorreu que os dois ficaram extremamente seduzidos, e aquilo parecia trazer o apelo do sempre. A coisa era tão forte que, apesar das pragas maternas, o moço e sua amada encontravam-se todas as noites numa alcova banhada pela lua a atravessar a vidraça... Um romance como no cinema teria sido, a não ser pela falta de um happy end convencional.
Um dia, Geraldo foi chamado à fazenda, pois sua avó estava muito doente. Sendo ele o neto predileto, sua presença se fazia fundamental naquele momento. Um mês Geraldo ficou por lá. No segundo, ao retornar, encontrou Cecília casada; a futura sogra não brincara em serviço. Desacreditado da sorte no amor (afinal tinha sorte no jogo!), decidiu, então, ir para São Paulo. Lá chegando, só se dedicou a estudar e trabalhar. Voltou a viver, enxugou o rosto, e, apostando também na sorte amorosa, conheceu Idalina e se apaixonou. Três meses depois estava casado. É que Geraldo, dono da sorte, nunca gostou de esperar. Assim foi que, um ano depois, já lhe nascia o filho, que tanto orgulho, divisas e dividendos traria.
Alguns anos depois, Geraldo estava rico. Vinte após, milionário! E virou um apregoador das vantagens cambiais do sistema capitalista. Passou a trabalhar na Bolsa de Valores, juntou dinheiro e, para completar, naquela época ainda herdou, sozinho, toda a fortuna da avó. Munido de inteligência e poder, fundou uma empresa-recorde do mercado financeiro.
Com o passar dos anos, o sortudo continuou levando sua vida normal de muito rico, até que, num belo dia, num rateio da Loteria Esportiva, ganhou sozinho o prêmio; foi o único acertador no país inteiro! Aliás, que aqui se registre o seu talento inominável com os números, os quais domava mais que adestradores a leões.
Muitos apelidos ganhou Geraldo em virtude do acúmulo de fortuna: já o chamaram de Patinhas e Midas:
– Ele tem uma caixa-forte, só dele.
– Esse é o cara que tudo que toca vira ouro!
Em Las Vegas, causou comoção:
– The best!
Eu prefiro chamá-lo, simplesmente, de O MILIONÁRIO.
Por Sayonara Salvioli.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Estrambótica ou No salão...


Conheci a criatura num salão de beleza, dia desses. À primeira vista, causou-me não sei que impressão, pois tinha o rosto pálido, um olhar de peixe morto e um meio-sorriso de quem quer se aproximar. Mistura estranha numa dessas ofertas cotidianas de riqueza dramatúrgica personificada. Até a achei simpática, com jeito entre o franco e o estouvado, porém decididamente esquisita.
Na luta por um espaço auditivo entre a fala da cabeleireira e o barulho do secador, ela começou a soltar a voz. Falava num tom relativamente baixo e ponderado, mas aquilo não parecia combinar com a mulher agitada que sua aparência denunciava. Por certo, era mais uma dessas charadas das tipologias humanas que se veem por aí, rotineiramente. 
A mulher começou a desfiar, em sua fala mansa, um rosário de frases soltas. Pensei em me livrar dela logo e disparei um “estou com muita pressa”. Ao que a criatura disse:
– Eu tenho uma amiga que, outro dia, também tava com muita pressa, e quando passava a roupa pra sair, o interfone tocou. Ela, então, ficou alisando a roupa com o fone e levou o ferro ao ouvido. Coitada! Ficou com a orelha direita e parte do rosto em carne viva! Maluquinha, coitada!
Manifestei-me:
– Até que não... Qual é o seu nome mesmo?
A criatura sorriu um sorriso faiscante de quem descobria meu interesse repentino:
– Cristina. Eu tô sempre por aqui. E você?
– Não. É a primeira vez que venho a este salão. Mas, voltando à sua amiga, essas coisas acontecem... Eu mesma sou muito distraída! De vez em quando, quase engulo tarraxas de brincos em lugar de comprimidos. Já aconteceu de eu levar a drágea à orelha e a tarraxinha à boca...
Os olhos da mulher brilharam:
– E levou quantos dias?
– ?????
– Não me mata de curiosidade! Quantos dias pra devolver a tarraxa ao brinco?
Finalmente entendi, meio enojada:
– Ah, não! Nunca cheguei a engolir nenhuma, não. Só sei que corro perigo de fazer isso...
E a mulher continuou:
– Mas a minha vizinha não é só distraída, não; ela é destemperada, isso sim! Mas, sabe... até que não posso falar muito: sou igualzinha!
Interessei-me:
– Ah, é? Você também costuma atender o interfone com o ferro de passar roupa?
– Isso não. Comigo acontecem coisas não muito domésticas, se é que me entende... Vivo por aí, me aventurando pelo mundo, desde que tinha 14 anos e viajei de mochilão para Londres. Mas com avião me dou bem; meu problema foi mesmo com moto...
– Anda de moto? Já teve algum acidente?
– Ihh... E como! Já caí muito de motocicleta! Quando tinha dezessete anos, cheguei a ficar quatro meses em cima de uma cama, enfaixada igual a uma múmia!
– Nossa! Como foi?
– Nada muito incomum, não. Eu tava participando de um motocross e, depois de uma pirueta, estourei várias partes do corpo... O pior mesmo foi a tal da luxação da articulação coxofemoral.
– Coxo... o quê? Como foi isso?
          _ Tive uma tremenda fratura do colo do fêmur e aconteceu isso... Um desastre!

          _  Meu Deus! Era o caso de você nunca mais andar de moto!
– Foi o que prometi à minha mãe. 
– Ahn bem...
– Mas não cumpri. E ela não podia imaginar sequer o que viria depois!
Eu estava cada vez mais estarrecida.
– Não acredito que você voltou a andar de moto, depois de ficar meses de molho por causa de uma...
– Ah, aquele tempo em cima da cama não foi nada, perto do que passei há três meses... Aquilo, sim, foi coisa cinematográfica: eu dando piruetas no ar, em pleno rush na Presidente Vargas! Menina, você não vai acreditar: a minha perna ficou pretinha! Achei até que tinha dado gangrena! Deus me livre!!! –. E beijou o crucifixo que trazia pendurado ao pescoço.

Dessa vez, eu também me benzi. Que loucura!
– Mas como foi o acidente? Assim... sem mais nem menos?
E a desatinada continuou:
– Nem te conto!... Foi uma coisa atrás da outra, num intervalo de minutos. Primeiro, uma explosão que me jogou pelos ares! Depois, eu caindo estatelada bem no meio da avenida, sem forças pra levantar... quando, de repente, vi um 136 se aproximando... e pensei: Era uma vez uma Cristina!... Que destino triste, meu Deus! Morrer depedaçada debaixo de um ônibus!!!...
– E aí?
– Aí... bem na hora em que o ônibus ia passar por cima de mim, um motoqueiro de jaqueta preta de couro me tirou dali numa performance sensacional, me jogou para o alto e aí caí de novo no chão, quase desmontada...
– Então, o cara te salvou e te levou pra casa?
– Nada disso, menina! O danado fez o papel dele me livrando da dita da foice, mas depois sumiu logo em seguida, misteriosamente.... Acho que foi um anjo que desceu do Céu pra me ajudar! E eu, acabada, ali, tive que me montar de novo, subir na moto e voltar pra casa. Mas isso não foi nada... pior veio depois!...
Dessa vez nem perguntei mais nada. Estava cansada das doideiras e desgraças daquela senhora. Mas ela insistia:
– É que eu tinha uma loja de autopeças com o meu marido, mas depois da morte dele...
– Você é viúva?! Também foi acidente de moto?
A criatura fez um meneio negativo com a cabeça.– De moto, não.
– Ah, foi de automóvel?
– Não. Dele foi coisa mais simples, sem esperar mesmo.
– Doença?
– Não. Um domingo à tarde, a gente tava conversando no nosso apartamento recém-comprado quando ele recostou na grade da varanda, ela caiu e ele despencou lá do alto!
– Que coisa triste! Caiu lá de cima?... Qual o andar?
_ 19º. Uma fatalidade, você precisava ver... Então, como eu ia falando, depois que ele morreu, a coisa degringolou e a nossa loja de autopeças faliu.
E o pior: ele tinha credores! O principal deles é um traficante de pedras preciosas boliviano e radicado na Maré. O sujeito tem seis esposas e quer me decretar o sétimo destino... Imagina! 
Diante de tantos disparates, mostrei desinteresse, e aproveitei que a cabeleireira me conduziu para outra cadeira. Vendo que eu ia me afastar, a mulher tirou uns potes e bisnagas da bolsa e me sapecou um Quer comprar?
Respondi com um não redondo e solene. Onde já se viu uma coisa daquelas: a criatura me alugar aquele tempo todo, narrando histórias escabrosas, para no final tentar me vender produtos estéticos de “uma nova linha americana”?!... Criatura mais estrambótica!

sábado, 14 de março de 2009

Rio de Pisces





Sou de Pisces, como o Rio de Janeiro. Nasci sob a égide astral do signo de Peixes; o Rio também nasceu sob este signo solar. Sim, porque o nascimento oficial das cidades é a sua fundação. E o Rio – como todos sabem – teve a sua sacramentada por Estácio de Sá, em 1º de março de 1565. No entanto, o Rio de Janeiro surgiu muito e muito tempo antes, naturalmente... E aposto que foi na época em que nascem os amantes das artes, alguns dos mais sensíveis e estetas seres do zodíaco: os festivos e sentimentais nativos do mês de março!... Sou, pois, capaz de afirmar – mesmo sendo deste milênio – que o Rio de Janeiro surgiu num dia encantado de março de alguma era antiga...


Rio, do gigante deitado,
era o mundo gerado,
a gênese explodia!
E junto à história da crosta,
do litoral e da rocha,
o Rio nascia!...
Assim, numa morada de homens
que entrecortam
e transfiguram os ventos
Formou-se uma pedra humana,
que encanto emana...
e desafia os tempos!


Diante de tanta beleza natural – destacada por especialistas dentre as mais expressivas do planeta –, beleza essa apenas realçada com o passar dos anos –, é mesmo concebível que conjunturas astrais favoráveis tenham permeado os céus, a baía e as montanhas recortadas desta cidade! O Rio é um desses raros lugares em que a beleza parece tomar conta da alma da gente... Quantas e quantas vezes, afinal, você e eu não nos pusemos a apreciar a enseada de Botafogo – com o cenário indescritível do Pão de Açúcar ao fundo – ao imaginarmos como é possível existir um lugar assim tão lindo e perfeito, totalmente talhado pela mão da natureza? Ora, o Rio é cartão postal a inebriar os olhos de seus moradores ou visitantes, nacionais e internacionais, que sentem os olhos sorrirem espontaneamente quando fitos em quaisquer de suas paisagens!


Rio, do Cristo que impera
do alto da fraga,
fitando a baía...
Na vasta extensão de infinito,
dimensão e estrela-guia!...


E não falo apenas do Rio do Pão de Açúcar. Refiro-me ao Rio da vista azul atlântica e das ruas bucólicas de Laranjeiras, ao Rio do Aterro olhando para a baía... falo dos rostos receptivos das gentes, da peculiaridade do clima e da alegria subindo com a temperatura! Falo do chorinho na praça, do tamborim do malandro e das performances no Maraca... É claro que também aludo ao Rio dos Dois Irmãos e da lagoa em forma de coração! Também me refiro ao Mirante do Leblon, ao Jardim Botânico, à Quinta de D. Pedro e à extensão verde da Tijuca, a maior floresta urbana do mundo!... Rio de Janeiro dos Arcos da Lapa, do calçadão de Copa, da Fonte do Mestre Valentim, do Largo do Boticário, do Corcovado e dos bondinhos deslizantes em trilhos nas alturas!... Na verdade, porém, o Rio é muito mais que tudo isso; é mais que a Pedra da Gávea (maior bloco de pedra junto ao mar, no mundo inteiro!) ou que o Copacabana Palace iluminado ante o glamour do luar carioca! A Cidade Maravilhosa condensa as letras de Chico, a música de Jobim, a poesia de Vinícius, o balouçar da Garota de Ipanema, o colorido das praias, o sonho do carnavalesco, a ginga da sambista e o choppe estupidamente gelado da esquina!... Este é o Rio para brasileiro, americano, holandês e inglês verem! Uma terra onde o comum é fascinante e todos os clichês são personais...


Rio de Vinícius,
da musa dourada
que seduzia!
De rostos na multidão misturados,
esquecidos, às vezes,
de tanta magia!

Da bola, do tamborim,
do pandeiro,
do samba do morro!
De uma tal plebe,
sem teto nem sede,
que pede socorro!


Apesar das incongruências sociais, a beleza natural do Rio ainda parece aimanar o coração do carioca... Quantas vezes, entre um trânsito aterrador e horários estreitos, não me acalmei enquanto passava pela orla, mirando o verde mar? Realmente, são incomparáveis o mar e o céu do Rio de Janeiro!... Este, não por acaso, foi escolhido como “o céu mais azul e bonito do mundo”, e a cidade foi eleita a Capital Mundial da Gentileza! Nosso povo hospitaleiro sustém os recordes do sorriso espontâneo. Não bastasse isso, a Cidade Maravilhosa também abriga uma das Sete Maravilhas do mundo contemporâneo, e – problemas à parte – ainda é um dos melhores recantos do planeta para se viver! (Palavra de muitos daqueles que se fixaram aqui e acolheram a cidade como sua). E guardando assim tantas coisas, só poderia o Rio ter surgido mesmo sob a influência abundante de Pisces! 
Reza a lenda que o pisciano tem nesta vida a sua última encarnação. Tal condição faria do nativo de Peixes um ser mais elevado que os outros, visto já haver vivido e evoluído mais que seus 11 antecessores da roda zodiacal. Ora, talvez isto explique o mar de emoções que permeia o coração de um pisciano. Este é um ser que – homem ou mulher – traz a alma nos olhos!... Normalmente condensa uma variedade infinita de artes. Afirmo e insisto, ainda, que nenhum ente dessa categoria é insensível ou coisa que o valha. Ser pisciano pressupõe ser especial, num acúmulo de características-funções: abundância de sentimentos, espiritualidade e magnetismo, intuição à flor de pele, nobreza de intenções, valorização de outrem e todo o espírito do mundo para a doação ao próximo! Se você tem um amigo pisciano, e se lhe dedica amizade de verdade (isto é fundamental, pois ele tem um sensor infalível), conte com ele: com certeza, em momento preciso, ele irá ajudá-lo! Mas o pisciano também não é só qualidade do tipo convencional. Os nascidos sob tal signo solar têm uma personalidade exuberante e, assim, suas águas também se mostram revoltas quando do anúncio de alguma tempestade... Lagos e oceanos nunca serão os mesmos: embora os piscianos sejam inteiros em suas emoções, estas são tantas que se diluem em todos os tipos de águas: brandas e suaves... ou maremotos arrebatadores!


Com um amigo pisciano, você nunca terá rotina, e sua companhia poderá ser sempre um mundo variado e feliz de acontecimentos! O pisciano também é muito justo e não pratica o mal, mas também não perdoa aquele que, porventura, o faça. No campo da amizade, dá mil e uma chances para aqueles com quem convive. Contudo, na milésima segunda vez, ele pode ser implacável, pois decisão de pisciano não tem volta. Mas normalmente ele se decide por uma grande entrega ao mundo, pela generosidade e por uma pujante pluralidade universal. Porque, afinal, um pisciano – como sempre lembro – é um mar de histórias!...


Numa divertida comparação do pisciano com a personalidade desta cidade, posso mesmo me referir a uma urbe de força exuberante, um lugar que abriga todas as águas, onde tudo pode acontecer!... Recôndito um tanto mágico, capaz de concentrar em si – e também despertar para si – todas as atenções do mundo, dada a força de suas verdades naturais. Por isso, insisto na denominação Rio de Pisces: Rio de sonhos, Rio de belezas e encantamentos! Cidade portadora de sorrisos e de sentimentos cultivados... Rio de Pisces: céu infinitamente azul como o sonho de um pisciano, povo alegre e festivo, como a alma pisciana... Rio de Pisces, do Cristo que nos recebe de braços abertos!... Rio de Pisces, surgido num janeiro qualquer, ante as profusas águas de um tal (antecedente, cenozóico) março...


Águas benditas de março
trazendo-me boas novas refeitas...
Segredando-me, suaves estardalhaços,
a abundância das colheitas!
E se coleciono muitos marços
às vésperas de outonos poéticos,
corre a vida e se manietam os laços,
em sua livre e perfeita métrica!...

Ora, na métrica dos espaços
e na teoria dos sentidos,
abarco em mil abraços
tudo que carrego comigo!

Passa o tempo, com os marços...
chuvas que me inundam, de novo!
Corre o tempo e não se atenua meu passo:
caminho na direção do que louvo!


Por Sayonara Salvioli

quarta-feira, 4 de março de 2009

A rainha do salão


Habitava um vilarejo pitoresco um casal atípico e inominável. Ele, um pacato aposentado, com rendas avultantes. Ela, uma mulher alegre, idade: 57; cintura: 58.

O homem e a mulher bem podiam ser considerados personagens bizarros de folhetim. Maxwel era alto, moreno, sorridente, extremamente magro e careca. Só que ele não era biologicamente careca: raspava todo o cabelo, pois assim se cria mais bonito. Jamais se viu calvície mais brilhante! Esmeralda, muito conservada, tinha pele alva e corpo de violoncelo. Trajava sempre vestidos coloridos e muito justos, na altura dos joelhos. Precisava ser respeitável. Seu sorriso de fisionomia antiga, contudo, exibia uma expressão esquisita.

O casal vivia bem. Na vila provincial de dois mil habitantes, sua condição econômica era abastada. Maxwel agradava aos pobres com mimos insignificantes, mas que lhes eram caros e preciosos. Esmeralda fazia o melhor doce de leite em cubos que já se conhecera e o distribuía entre a criançada da vizinhança.


Sua rotina era alegrada por bailes ocasionais. Não havia um só movimento dançante nas redondezas em que os dois não estivessem presentes, a rodopiar pelo salão. Imaginavam-se grandes dançarinos. Imaginavam-se.


Esmeralda esmerava-se em brilhos e enfeites para parecer bela e atraente. Carregava os cabelos (cacheados e "moldados") de laquê e pintava rudemente o rosto. Cria-se bela, inacreditavelmente. A mulher mais linda do baile... A rainha do salão!

Na verdade, Maxwel e Esmeralda formavam um casal fora de moda e fora de esquadros. Mas que ostentava no vilarejo de habitantes ignaros uma imagem de casal admirável e de porte. Os dois passeavam de braços dados pela praça do albergue, como se fossem representantes da mais fina estirpe. Eram pessoas admiráveis e de berço, sustentavam.
Toda a inocente gente do lugar nutria grande consideração pelo casal residente na Rua Libélula, 502. Davam-lhe sua amizade sincera e filhos para batizar. Era oportuno e providencial: retornavam-se-lhes lucros, ínfimos presentes que lhes ativavam a cobiça reles.


Falava-se, porém, a boca pequena, que o homem não era lá muito sério. Metia-se pelos becos escuros do lugarejo, atrás de moçoilas desavergonhadas. Bolinava-as e pagava-lhes com mimos e suspeitos empregos. Feio, cadavérico e desajeitado, precisava esforçar-se para agradar.

A mulher, nessas ocasiões, ficava em casa e se fingia de morta. Mas era muito séria. Não procedia mal com o marido. Seu único capricho era frequentar a sociedade, falava cheia de orgulho. Gostava de sentir-se o centro das atenções nos bailes de província. Querer aparecer era coisa que não fazia mal a ninguém.

Do homem falava-se também que nutria uma paixão platônica pela índia Bartira, moça de dezoito anos que se desnudava e desfilava nos trilhos da linha férrea nas noites de lua cheia. Segundo a língua do povo, a bugra, a qual fora apanhada no mato a laço e levada para a vila, era inocente e virginal. Só que quando a lua se enchia e apontava no céu claro, seu lado selvagem aflorava... A moça ficava nua em pêlo e punha-se a andar e correr sobre a linha do trem. Muitos homens do lugar ficavam acordados durante essas madrugadas. Urravam extasiados quando a indígena surgia. Mas ninguém a atacava. Aquilo era apenas um feitiço de Jaci, diziam.

Maxwel era o mais devotado entre todos os assistentes do espetáculo do luar. Permanecia sentado, magnetizado ante a visão. Seus olhos ficavam parados, e o espiríto parecia deixar seu corpo, aparente e momentaneamente sem vida.
Aos domingos, o casal ia à missa e fazia o ofertório. Dar o dízimo não era nada. Deus fora muito bom com eles. Era preciso retribuir.

Estranhamente, Esmeralda e Maxwel não tinham filhos. Só um gato pardo e feio. O bichano era magro, apesar do muito leite que bebia. Penduradas na varanda dos fundos, havia também muitas gaiolas de periquitos, sanhaços, curiós e canários. O casal aninhava também um melro, chamado Azulão.


Sua vida parecia quase normal. Aos olhos da gente simples local, entretanto, tinha um quê especial de glamour. Um glamour desbotado, era verdade, mas não deixava de ser um glamour.


Esmeralda tinha modos suspeitos, jeito vulgar e trejeitos notórios. Andava pela casa descalça e com pouca roupa. Mas o povo ingênuo a julgava uma boa senhora. De respeito e consideração.

Na verdade, porém, a mulher houvera sido descoberta por Maxwel num antro noturno da Bahia, um randevu chamado Borboleta de Ouro, freqüentado pelos cacaueiros da região. Maxwel cumpriu as regras da casa e alugou-a por três noites consecutivas. Apaixonou-se pela alvura da mariposa de curvas generosas, transgrediu as leis do bordel e a pediu em casamento. Esmeralda topou na hora. Onde se viu mulher da vida rejeitar marido?!... Ainda mais de papel passado, como ele prometia. Mas não cumpriu. Só que ela quis assim mesmo. É claro. Afirmava em seu jeito tosco que “juntado com fé, casado é...”
Ao deixar a vida fácil, Esmeralda não imaginava que ia virar dama de respeito da sociedade d’algum lugar. Não sabia que existia no mundo uma cidade como Vida Feliz. O lugar era uma comunidade de pessoas meio inocentes, meio hipócritas, que não reconheciam ou condenavam quaisquer desabonos morais e sociais. E Esmeralda deixou a vida fácil para ir pra Vida Feliz. Decidiu que ia viver só para o marido, o seu marido. Nossa, como isso dava respeito! Principalmente a ela, que nunca tivera marido!

O casal viveu muitos anos na pacata província rural. Quando ia aos bailes da sede municipal, causava risos e estranhezas... Todos riam do pretenso pé-de-valsa e da prostituta passada. Sim, ali em Vasos, as pessoas percebiam o inusitado daquela performance dúbia. Viam claramente a simplória pretensão do homem e o sorriso indisfarçável da antiga meretriz. Mas em Vida Feliz os dois continuavam sendo um casal de respeito.

E na sua vidinha de glamour provinciano, os dois viveram muitos anos. Até que, numa noite de lua cheia, Maxwel foi encontrado morto no Beco da Escuridão, próximo à estação ferroviária.

Esmeralda chorou “por fora” durante vinte dias. No vigésimo primeiro, declarou que ainda estava viva e precisava fazer mais caridade: adotou todos os afilhados do sexo masculino, até os crescidos. E continuou a viver feliz em Vida Feliz, por mais alguns anos. É verdade que os vizinhos estranhavam os agudos sons guturais que emanavam da casa, nas madrugadas, após os longos bailes da rainha do salão... Mas, sempre que o dia clareava, Esmeralda continuava a ser uma mulher de respeito. Dona Esmeralda. Dona Esmeralda Paranhos, viúva do saudoso e respeitável Maxwel Paranhos. Deus o tenha.

Por Sayonara Salvioli