sexta-feira, 23 de julho de 2010

Exortação


Creio que, todos os anos, quando o calendário ultrapassa a sua metade da vez, todo mundo faz aquela solene retrospectiva de seu interior e exterior do período que finda. E aí ocorre aquela pergunta básica: o que realizei nesses meses todos? Só que em meio à constatação ou não das conquistas realizadas – das meras às sofisticadas – quase ninguém se dá conta do alcance de itens que não estavam na nossa projeção... Afinal, as pessoas não computam alguns ganhos, desses que não aparecem muito, como saúde boa e coisas cotidianas em seu lugar. Sem contar aqueles rasgos no cotidiano, que, vez por outra, riscam os céus da nossa placidez!... Uma coisa que me agrada muito é verificar a incidência de coisas inesperadas que acontecem – aquelas surpresas sensacionais que extrapolam, além das expectativas, a largueza da maior das imaginações!... Ah, eu adoro esse efeito-cometa da existência!... Aquilo que chega e com que nem havíamos sonhado!
Porém, sob uma ótica mais ampla, é preciso considerar até mesmo o novo que não se encontra na roda das grandes dimensões. Necessitamos olhar para esse passado próximo e saudar, com um belo sorriso, até mesmo as situações ditas comuns ou esperadas, mas que ilustram com alegria os nossos dias em qualquer época. Tanto e tanto já se ressaltou o clichê da “felicidade simples” que a ideia ganhou contornos de lugar-comum fora de moda. Contudo, por trás disso, talvez esteja a resposta para muitas de nossas buscas mais ousadas. Às vezes, estamos mesmo desejando algo maior para, com tal conquista, realizarmos bem – e com mais facilidade – coisas consideradas menores, cotidianas mesmo!
Quando me referi, aqui, à dádiva da “saúde boa” como um bem que não aparece aos nossos olhos, creio estar lembrando uma de nossas mais inconsequentes verdades: a não-conscientização do valioso bem da saúde que fomenta a conservação da vida, objetivo que deveria ser o mais importante de todos. Afinal, do que servirão quaisquer de nossos novos tesouros adquiridos na ausência do básico – a sobrevivência? Francamente, depois que passamos por uma ameaça vital, não sabendo se ainda estaremos vivos em 24 horas, muitos de nossos antigos conceitos de conquista se perdem. Primeiro, pois, necessitamos de um corpo subsistente, para depois orná-lo com as sedas, os metais e os rubis da trivialidade material. Parece ridiculamente simples – e mesmo evidente – esse conceito, mas não é. Porque é preciso compreendê-lo em sua plenitude, ou seja, conhecer a verdadeira face da subsistência ante o risco, da vulnerabilidade ante o desconhecido do futuro dos próximos minutos.
É em situações assim que podemos perceber o quão insignificantes podem ser muitas de nossas preocupações e agruras. Parece que é comum inventarmos problemas – dilemas imaginários –, na ausência de problemas reais em situações palatáveis. Por vezes, os nossos fantasmas interiores podem mascarar conquistas obtidas na fluência de nossas ações e, mesmo, impedir o alcance de outras maiores. O problema é sabermos quando há, de fato, um problema. Porque, não raro, muitas de nossas questões de difícil solução não existem senão no terreno exacerbado de nossa imaginação.
Em períodos de reflexão, talvez o melhor seja limpar o nosso eu interior de fantasmas arraigados que se afiguram, sob uma ótica deturpada, como problemas sérios e implacáveis. Ora, a decisão pode ser o seu veículo de fé. Com ela – após exortar seus fantasmas interiores – você poderá criar um caminho livre para bem exercer a dádiva imensurável de sua vida! Sugiro que dê a você mesmo um presente peculiar, personal: a autolibertação, a liberação pessoal para o gozo pleno do cotidiano. Liberte-se das amarras que lhe complicam a vida, desate-se do difícil e do insolúvel! Acredite na translucidez de um caminho novo e límpido. Exorte seus fantasmas interiores e ganhe o mundo vasto de sua existência!


Por Sayonara Salvioli

sábado, 10 de julho de 2010

Cena de acrofobia

Estava fora do Rio, numa viagem rápida. Almoçava no hotel quando o celular tocou:
– Alô!
– Oi! Sayonara? (tempo) Este celular é da Sayonara Salvioli?
– Sim. Eu mesma.
– Tudo bem, Sayonara? Meu nome é Marcela. Sou produtora de um programa de TV. Canal fechado.
– Oi, Marcela! Como vai? Já nos conhecemos???
– É que eu te vi numa comunidade de acrofobia no Orkut. Tava pesquisando perfis de pessoas acrofóbicas. E achei o seu muito bom. Não vamos achar perfil mais interessante que o seu.
– Como pode achar isso??? Só pelo meu profile?
– Não. No seu profile eu vi o link do seu blog. Entrei e adorei! Você é a pessoa que a produção precisa pra mostrar no programa.
– Ah, sim. Visitou o meu blog. Que bom!... Mas como conseguiu o meu celular?
– Sabe como é... rede de contatos! E um fator facilitou tudo: uma colega minha de trabalho estudou com a sua filha na PUC... Aí foi beleza.
– Aham.
– Então, uma entrevista com você seria bem legal porque mostraria alguém com um perfil bacana, inteligente... e que sofre de acrofobia. Mostraria que gente interessante também pode ter fobias. Se importa de falar sobre o assunto?
– Claro que não! Tenho acrofobia mesmo, tanto que entrei numa comunidade do tema.
– Então, como é a sua? Tem um grau muito alto?
– Olha, eu diria que se trata de uma acrofobia normal (risos). Intensa em alguns momentos, como todas as fobias. Mas nada que chegue a causar pavor ou grandes dificuldades. Ando bem de avião (só não gosto de longos vôos à noite, mas também não fujo deles) e moro no vigésimo terceiro andar.
– Vigésimo terceiro andar??? Nossa, então você não sofre de acrofobia de verdade?!
– Acho que podemos dizer que tenho manifestações acrofóbicas, mas que não sofro propriamente com o medo... não sou doente disso, digamos... Não sofro profundamente de acrofobia simplesmente porque isso não é, pra mim, nenhum padecimento.
– Mas você topa participar do programa, dar uma entrevista pra gente?
– Topo, sim. Sem problema. Mas lembrando que eu sou uma fóbica moderada, tá? Não sei se isso se enquadra no perfil da matéria que estão preparando.
– Poxa! Eu quero muito fazer um quadro bem bacana com o seu depoimento. Mas precisava mostrar alguém com sérios problemas de fobia, a ponto de isso atrapalhar gravemente a sua vida...
– Olha, Marcela, com toda a franqueza, esse não é o meu caso. Na verdade, não que eu queira ser pretensiosa, mas acho que sou bem resolvida demais para algum medo assim atrapalhar a minha vida.
– Ih... Como vamos fazer então? Precisamos mostrar para o telespectador aquele pavor que toma conta do acrofóbico quando está diante da altura. Sabe aquele medo nos olhos, aquela sensação de terror estampado no rosto?... É disso que precisamos!
– Marcela, então eu acho que o meu perfil não é o indicado, não...
– Desculpe a insistência. É que o seu perfil pessoal seria perfeito para o programa em si, já que é um pgm com uma audiência bacana. Me diz mais alguma coisa sobre o seu tipo de fobia...
– Bom, minha acrofobia é muito peculiar. Como te disse, fico muito bem no avião, contemplando tudo da janela, e me instalo – com conforto – no peitoril de concreto da minha varanda. Não sinto medo nesses momentos. Se uma grade está na altura do peito, por exemplo, não me incomoda a altura. O que me atemoriza somente é estar num lugar alto com o entorno vazado... Por exemplo, se o peitoril da minha varanda não fosse de concreto, se fosse uma gradezinha frágil... Então, se eu olhar pra baixo de uma altura considerável – vendo o que quer que me envolva (algo de vidro, aberto ou transparente) na altura da minha cintura ou abaixo dela... fico insegura momentaneamente.
– Nervosa, muito nervosa, quase sem respirar?
Parecia que a produtora queria seguir uma linha de edição prévia, atribuindo-me características que eu não possuía. Era preciso preveni-la; dizer-lhe: Espere aí, minha filha. Tenho fobia de altura, em alguns casos, mas isso não me atinge o autocontrole e a noção do que se passa ao meu redor. Pelo contrário, previne-me, me ajuda a criar um escudo de autoproteção.– Não, absolutamente. Só circunstâncias drásticas têm o poder de me deixar muito nervosa. E a minha... digamos... leve fobia de altura não é uma dessas.
– Você falou em algo transparente ou de vidro te envolvendo, te causando medo...Tipo um elevador panorâmico? Fica apavorada quando está em um?
– Não. É verdade que não gosto muito de elevadores panorâmicos; posiciono-me sempre do lado fechado (quando há), mas eles também não me apavoram. Jamais deixaria, por causa dessa fobia, de usufruir do conforto deles e ter que subir lances de escada, por exemplo.
– Ah, sim. E o bondinho do Pão de Açúcar?
– Olha, só tive a magnífica visão da Baía de Guanabara uma vez, há muitos anos, quando resolvi encarar o bondinho. Fiquei fascinada, claro, mas não aproveitei todos os ângulos por não me sentir bem olhando de uma altura tão grande. E também não quis voltar lá. Essa é a minha diferença para quem não tem acrofobia: não me amarro nesses passeios, não pratico escalada, não me divirto nas alturas. Só isso.
– Então você não pularia da Pedra Bonita?
– Claro que não! Nem mesmo se desejasse o suicídio!...
– Então eu já sei: vamos fazer esse quadro com você na Pedra Bonita, mas com muito cuidado. A equipe te acompanha, a gente te cerca de profissionais da área e a gente filma, lá em cima, as suas reações. Mas precisamos pegar bem seus momentos de tensão, suas caras e bocas de medo... Pode ser?
– Está sugerindo que eu receba um monitoramento de vo
o livre e me lance nas profundezas do espaço? Esqueça!
– Não, Sayonara, não é isso. A gente só levaria um papo com você, com sua conversa inteligente, imaginativa, falando da sua fobia...
In loco?
– Sim. Algum problema?
– Todos. Gosto de entrevistas, de câmeras. Nada contra. Mas não gosto de espetacularização conceitual.
– Hã? Espetac... o quê? Como assim?
Eu já estava perdendo a paciência. E quem estava do meu lado já previa uma de minhas ditas temíveis reações (risos)...
– Olha, Marcela, vamos fazer uma coisa: eu te indico alguém que sobe a Pedra Bonita, com mochila nas costas... sabe, do tipo que acampa, usa tênis diariamente e convive com mosquitos?...
– Não, não, Sayonara. A gente queria o seu perfil!
– Lamento. Não dá pra ser o meu perfil, O.K.? Além disso, ele não é tão adequado assim às expectativas de vocês: não faço cara de apavorada e atentaria contra o figurino da jornada. Já pensou: eu na Pedra Bonita com meu salto agulha?
– Puxa...
– Desculpe, tá? Mas tudo que posso fazer é ajudar com uma indicação de entrevistado. Conheço muita gente e posso ver alguém que tope o programa. Você quer?
– Se não tem outro jeito, se não pode ser você, quero sim. Quem é?
Sim. Quem é? Perguntei-me o mesmo. Lembrei de algumas fisionomias-personas e, por fim, fixei o pensamento numa pessoa. Eu já ouvira dizer que ele tinha acrofobia... tipo não tremia de medo de altura, mas também não gostava de escalar... e não ficaria à vontade pagando alguma aposta no Corcovado.
– Ah, o nome dele é Leonardo.
– Legal... Qual a profissão dele?
– Ele é publicitário, marketeiro, um perfil legal, bem descolado, você vai gostar.
– Jura, Sayonara? Puxa, você está me ajudando muito! Mas... será que ele vai topar?
Ri por dentro pensando que, do jeito que o cara era vaidoso com aparições e ávido por mídia, aceitaria na hora. Na verdade, acho que ele venderia até a mãe pra isso.
– Ah, ele vai (sufocava meu riso interno)! Vou te passar os contatos dele.
Marcela agradeceu mais uma vez e anotou tudo.
Até fiquei curiosa com o desenrolar da situação, mas os dias seguintes foram muito ágeis para que eu tivesse tempo de procurar notícias a respeito. Acabei perdendo a exibição do programa. Na correria, esqueci mesmo.
Marcela, no entanto, muito grata por eu ter lhe arranjado a pessoa certa para a entrevista, me ligou de volta dias depois.
– Sayonara, você foi muito bacana! O programa ficou ótimo! Me ajudou demais!
– Que bom! E como foi a entrevista? Ficou legal? Como o Leonardo reagiu a setecentos metros de altura?
– Ah, vou te contar... Ele acabou não indo, mas no final deu certo.
– Mas... como, se ele não foi?
– Ele não foi, mas mandou a mãe.

Não falei?

domingo, 4 de julho de 2010

Presa na torre?!


Quando eu era criança, li a obra Ou isto ou aquilo, da sensacional Cecília Meireles. E me chamavam especial atenção os seguintes versos: É lá que eu quero morar: no último andar. Ora, além do poema na obra específica, eu lia, relia e reencontrava aqueles versos em todos os livros de Comunicação & Expressão (lembram-se desta nomenclatura?) da escola. Havia um, inclusive – de quando eu tinha nove anos – que trazia uma ilustração complementando perfeitamente a idéia dos versos de Cecília: uma menina, provavelmente da minha idade, olhando as estrelas, em meio à altura estonteante de um último andar do que parecia ser o maior arranha-céu do mundo!...

Aquela imagem, em coesão cognitiva com o lirismo daqueles versos, me reportava a um apartamento – situado onde eu não sabia – plantado bem no meio das nuvens! [De lá se avista o mundo inteiro: tudo parece perto, no ar]. E tal me parecia muito interessante, embora a realidade de meu momento infantil também fosse fantasiosa: eu habitava o mistério de uma casa enorme – cenário perfeito de um filme de suspense –, que tinha um imenso corredor, com portas labirínticas por todos os lados (parecia-me – quando eu saía correndo pelo corredor, sozinha – que de cada porta daquelas saía um fantasma diferente!), com muitos quartos e salas, espelhos, portais, cofres, estantes e livros... Uma grande casa linear, que não necessitava de uma amplitude vertical como a dos versos cecilianos. Ainda assim, aquela página com os versos e a ilustração me detinham, e retinham mesmo minha imaginação, fazendo-na divagar pela cidade distante do reino mágico daquela poetisa que queria morar no último andar!... No último andar é mais bonito (...) É lá que eu quero morar. E eu pensava: eu também!

Seria difícil descobrir (embora eu tivesse contado o número de andares do prédio do desenho e este mudasse de livro para livro) se aquele arranha-céu de literatura aplicada excedia um prédio de uns trinta andares... Seria possível? Nem os anos – décadas – me responderam isso, mas Mestre Tempo não se esqueceu da incógnita. Embora um pouco mais tarde eu tenha me descoberto levemente acrofóbica, o que talvez tenha amainado, por vários anos, a minha fixação por um tal fantasioso andar perto do céu... Mas eis que, um belo dia, visitei um imóvel, e do alto de uma de suas janelas vislumbrei, em divisa tênue, o encontro do mar com o horizonte! [Do último andar se vê o mar]. A paixão foi quase imediata e... resultado: mudei-me para lá! Ou melhor, para cá!

No primeiro amanhecer, acordei com um passarinho entrando por uma fresta ainda não coberta no vão do ar condicionado [Os passarinhos lá se escondem para ninguém os maltratar]; nas primeiras noites, mirei as luzes do entorno: pareciam olhos de íntima metrópole [Todo o céu fica a noite inteira sobre o último andar]; nos primeiros meses, o céu visto dos olhos da cobertura [Quando faz lua no terraço fica todo o luar]; nos meses seguintes, porém, meu olhar começou a buscar um estreitamento com a terra [O último andar é muito longe: custa-se muito a chegar]. A poetisa era também profetisa, afinal uma condição pressupõe a outra.

De uns tempos para cá, ao visitar lugares de alturas mais razoáveis, comecei a sentir uma certa familiaridade com o que é mais próximo dos espaços lá de baixo: parques, crianças e gentes em seu tamanho natural!... E agora me sinto, de novo, quase que como a menina dos versos de Cecília: a mesma perplexidade ao olhar para as nuvens, porém com um certo estranhamento ao mirar a distância do último andar. Será que é lá (aqui) que eu quero morar?... Parece acometer-me, tardiamente, o complexo de Rapunzel! (risos). Também me vêm à mente consciências bruscas de Ismália!... Porém, consciências... claro! Prefiro, naturalmente, contemplar a lua no céu de um alto bem mais alto que sobre a lua no mar! Mas não tão alto que se avizinhe do céu assim! Restam-me, então, os elevadores e as escadas, pois meus vôos de imaginação parecem me ditar um passeio mais ao nível das gentes passantes, dos gramados e das flores, das praças, dos cãezinhos passeadores, da padaria, da banca e das esquinas. Depois da experiência real do arranha-céu de Cecília, no poema da realidade estou me sentindo como que presa na torre!...

Por Sayonara Salvioli