domingo, 27 de fevereiro de 2011

A sabedoria da escolha


Diante da vasta gama de opções que o mundo apresenta, qualquer pessoa pode ficar confusa na hora de fazer suas escolhas. E é aí que reside um dos maiores riscos, justamente no ponto onde vários caminhos se cruzam, e em cuja intercepção só se pode escolher uma via.
Para a harmonia dos diversos tipos de felicidade humana (pessoal, afetiva, profissional, social), é fundamental alcançar a sabedoria de se fazer a escolha certa naquele momento de difícil decisão. Escolher o certo pode ser, na maior parte das vezes, optar pelo que existe de mais profundo em nosso interior. Pelas consumadas leis do empirismo – aliadas à latente convicção do inato –, estou convencida de que é o sentimento o fio condutor desse ato. Nada mais prudente que ele – se real e verdadeiro – para traçar, junto à razão prática, a trajetória da escolha. E aí, meu leitor, ninguém pode ser mais feliz do que aquele que escolheu certo, se enveredou pelo caminho bom da autoconsciência e, mais de uma década depois, pode constatar o sucesso da jornada na trilha de um dia!
Estou entre aqueles que imputam ao tempo a autoridade de magistratura sobre os itinerários humanos. Nada, afinal, como os anos para trazerem aquela certeza sobre a qual tanto se especulou. Filosofias e inquietudes à parte, a essência é aquilo que fica. Permanece no mundo o que é forte, profícuo e abundante. A respeito, tive certezas há um decênio que agora vêm me saudar a sabedoria da previsibilidade acertada. Como é feliz essa sensação!

Deve ser por clarividências como essa que não costumo, nas diversas circunstâncias da vida, conceber o tal risco calculado. Sem querer ser presunçosa, procuro evitar o risco, abomino o erro plausível e delego a toga das minhas ações a uma tal clarividência do sentimento, esse elmo que pode proteger as pessoas como um distintivo. E acredito, também, que esse sentir mais que intuitivo se alia ao caráter em todas as vezes nas quais o ser humano age devidamente, faz a escolha certa.

Creio que eu já tenha sido testemunha, em diversas ocasiões, de opções infelizes de quem não respeitou certos parâmetros e adentrou caminhos sem volta, túneis sem luz. É claro que, como no velho clichê, nem sempre encontramos flores à orla do caminho, mas acho mesmo que pode ser feliz quem opta por sua verdade. E a verdade de cada um é o seu caminho mais seguro. É aquele porto plácido em dia de céu azul; é como a acolhida do abraço terno e firme de quem se ama. E reafirmo, meu querido leitor, que o sentimento – íntegro e integral, sólido, perseverante, forte – é autor e juiz exclusivo da escolha certa.
Por Sayonara Salvioli

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Evocação personal


Eram sete da matina, hora de profundo hermetismo. Fração sagrada das parcas vinte e quatro horas diárias, momento máximo de minha apreciação do universo de Hypnos (risos sonolentos). E justamente em momento assim tão solene... Trrriiiiimm: toca o telefone. Como tenho excelente ouvido, consigo me transportar até a longínqua dimensão da realidade:
– Alô! – atendo, com voz distante e nítido tom de desagrado.
– Bom dia! Aqui é o Estêvão.


Meu coração se acelera. Não é possível! Engulo em sequíssimo, mas tento disfarçar meu embargamento emocional:
– Eeestêvão???
– Sim. Tudo bem?
– Tuudo... – esfrego os olhos pela nona vez em meio minuto – Mas... que Estêvão?
Antes que ele pudesse responder, viajei pela milésima faixa sideral, imaginando se tratar do protagonista um tanto pirado do conto que eu houvera escrito exatamente naquela noite, pouco antes de dormir... Apavorei-me ao imaginar que ele havia saído do limbo de todos os personagens do mundo para, sem cerimônia ou qualquer escrúpulo, invadir a privacidade da minha vida real – e em horário proibido! Que falta de respeito! Tremenda falta de noção de hierarquia! Acho que não dosei bem a sua psique ou os seus traços morais... Mas a emoção não é a de indignação ou de condenação... ou de uma especulação cognitivo-autoral... É de meedo! Respiração ofegante: acabo de me lembrar que assistira também aquela madrugada um filme forte e assustador, em que um personagem saía da ficção e ia procurar o autor... para matar!!! O terror me faz descobrir o bruxismo, e meus dentes trincam mais do que o poderiam em Oymyakon... Suspiro mais fundo e digo com voz de thriller:
– Como foi que você descobriu o meu telefone?
Quase meio minuto de aterrador silêncio. Onomatopeia para o meu coração: Tum tum tum (risos ridículos)... Finalmente:


– Você não se lembra?
Pânico nº 78. A essa altura, eu já divagava por Pirandello... Deus dos autores! Então o meu Estêvão – criatura que fiz surgir à testa do mundo imaginário – achou de aterrorizar-me com seus dramas internos? Provavelmente Estêvão sentira algum vazio lítero-existencial, talvez alguma lacuna na constituição de sua personalidade... Claro! Problemas de tipificação estrutural. Reflito mais profundamente e constato que a culpa devia ser minha: dei-lhe características delimitadas de criatura, mas não lhe concedi o arbítrio de uma história verdadeira para viver! Seu habitat na celulose realmente era um lugar triste e solitário... e sua dimensão vital era limitada, cerceada por uma autoria egoísta e impiedosa. Lamentação: agora era tarde! Estêvão soltara as amarras de sua aquém-vida, e – como um fantasma pós-moderno da ficção – vinha me puxar os pés na manhã!

Ele insiste:
          – Parece que você não está se lembrando de mim.

Sua voz saíra metálica, taxativa, cruel. Eu corria perigo! E àquela precoce hora quem iria me salvar?... Naquele exato segundo concluí que estava perdida. E tudo por causa de um personagenzinho idiota, maníaco-depressivo, que eu trouxera à luz numa noite cinza... O problema é que eu não imaginara que ele transporia a linha (tênue, pelo visto) da dimensão ficcional para a humana! Afinal, enquanto um personagem tem uma constituição artificial – fechada, acabada –, o ser humano apresenta zonas conflituosas de ação e reação, indefinidas, em processo contínuo e inacabado, como se sempre em construção...

De repente, Estêvão me tirou do devaneio analítico com sua voz alta e sem educação. Minhas pernas tremeram, tremor seguido por três segundos de espasmo: não o reconheci nessa hora. Estava certo que ele era um tanto doente e problemático, mas não me lembrava de tê-lo feito claramente agressivo e grosseiro... Foi quando ele esclareceu:

– A senhora não está mesmo lembrada de mim?! Nos falamos há uns quinze dias... Sou o fotógrafo do casamento da sua amiga... Ela me disse que era pra acertar com a senhora o conceito de imagem e cenário.
          Ufa!!! Mil agradecimentos à Nossa Senhora dos Distraídos (ou dos Loucos?)! Tratava-se, então, do   
          tal fotógrafo... Acontecera que uma amiga próxima, praticamente da família, me pedira para auxilá-la 
          na organização de seu casamento – detalhes de estruturação de cerimônia religiosa e recepção... 
          Motivo: eu era conhecida na região pelo meu know-how em organizar casamentos [aos dezenove,   
          “produzira” o meu próprio, com uma infinidade de detalhes supérfluos e seis mil – isso: 6000 (leia-se 
          seis mil mesmo!!!) convidados!!!!!] Por causa desse fato (talvez refletor de uma então provável 
          anomalia psíquica de minha parte), pessoas de várias cidades me procuravam – a mim, à famigerada 
          noiva popularíssima – para que eu as ajudasse em seu grande evento [E pensar que eu nem ganhei 
         dinheiro com tais consultorias; não cobrava! (risos)]...

Minutos seguintes: instantes leves de alívio extraordinário. O homem era, de fato, real, assim mesmo, bem pleonasticamente, para a minha felicidade e integridade! A confusão se dera pela confusão imediata de nomes, e eu não me lembrava de ele se chamar Estevão... Em seu cartão constava apenas E. Guedes Rubim. Conversei então com a criatura – sem segundo sentido –, acertamos detalhes, marcamos uma reunião. E eu pude voltar a dormir, como um anjo... Ops! Sem entidades. Foi um sono bem humano.


Por Sayonara Salvioli

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Matizes & sombras





Matizes & sombras
Marina carregava em seu código sentimental as imagens de uma personal Macondo, como a de Gabo. Igualzinha à dele: com uma casa centenária, uma praça silente, árvores sem balouçar e fantasmas translúcidos. Daquela vez em que  a visitou, muito solenemente, encontrou o solar da Praça da Soledade com as portas escancaradas e as janelas dançando com o vento, a estapearem as paredes.

Reverenciando mentalmente a sabedoria de Gabriel, ela pensou que a sua cidade-lenda abrigava muitos fantasmas, que voejavam como sombras, brancas, negras e coloridas, capazes de enganarem o céu e de se abrigarem num purgatório de boas intenções. Naquela tarde de cobre outonal, Marina avistou mentalmente o sobrado rosa com fachada vinho em frente à linha férrea. Foi como se visse Hannah a atravessar o jardim, em seus aflitos passos miúdos, passando pelo portão em direção à calçada. Vislumbrou-a percorrendo toda a Rua Direita até alcançar o pátio frontal da escola...


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Hannah adentrou o caminho de acesso ao portão principal, sorridente como sempre, rosto que emoldurava a alegria nos fios caídos do coque bem feito, quase formal. Devia ter seus quarenta anos, mas parecia um pouco mais velha, já que insistia naquelas saias de senhora.

Era o mês de julho, e na localidade se comemorava o aniversário municipal com uma parada escolar, daquelas com banda marcial e alas demarcadas por cartazes de isopor com letras em alto-relevo. E, ao centro destes, se viam imagens afixadas, que eram as pinturas sombreadas de Hannah, artista plástica tímida, mas não menos talentosa. A eficiente educadora do Pereira Telles parecia desprender vida de seus dedos manietados a pinceis de todos os matizes... a deslizarem por uma tela ou uma simples folha de papel. Quando se tratava de imprimir formas e cores a alguma ideia, ela exercia o seu dom de Midas e maravilhava tantos olhos quanto se pusessem em suas obras! No entanto, era modesta quando elogiada pelas suas pinturas:

– Artista? Eu? Imagine! Eu só esboço com as tintas alguns traços do que vejo. As imagens que se formam são a materialização da luz das coisas que chegam aos meus olhos...

Quanto à pequeniníssima Marina, tinha não mais que oito anos, mas já olhava com percepções de esplendor os tons que Hannah pintava, imaginando-os com vida! A menina, com sua alma de artista ainda pouco desvendada, reconhecia na mestra alguém sublime, com os tais dons admiráveis capazes de despertar emoção numa pessoa. E de emoção Marina entendia muito – bem mais que a maioria das meninas de menos de dez anos, isso era certo.

Naquela manhã com céu adamascado, a garotinha precoce da quarta série do Primário ficou feliz quando viu Hannah chegar. Correu para ela e falou, com a desinibição de sempre:

– Bom dia, Dona Hannah! A apresentação cívica vai ser antes ou depois do desfile?

– Será depois, Marina querida, lá na praça, com a diretoria do colégio e a comitiva do Prefeito. Está com seu discurso pronto, não está?

– Sim, professora. Está aqui. – e tirou da maleta escolar uma pasta com a pintura do emblema da escola, contendo uma folha dentro, com umas vinte e cinco ou trinta linhas ornadas em caligrafia firme. A capa fora feita pela Professora Hannah, mas o discurso, este era obra da pequena. Esta – que revezava a cada ano o nobre cargo de Presidente ou Oradora do Centro Cívico Escolar – tinha sido outorgada, pelo corpo docente e pela diretoria da escola, em edito oficial, a representante mirim dos estudantes que, todos os dias, caminhavam e corriam pelo gramado do Pereira Telles.

Hannah sorriu e afagou a menina no rosto:

– Você é o nosso orgulho, Marina! Aposto que hoje vai nos emocionar novamente quando ler essas suas palavras de madureza inacreditável, como se chegassem a você dezenas de anos antes!... – e pegando a pasta com o discurso: – Deixa isso comigo que te entrego quando estivermos no palanque.

Marina sorriu, mas pensava que tantos elogios não lhe cabiam. Achava que Dona Hannah, sim, era uma artista, alguém que lhe ensinava um mundo de coisas. Ela era apenas uma menina – de postura, longos cabelos lisos, com olhos vivazes e ideias nobres no coração (isso ela considerava que tinha!)...

O alto-falante soou, desafinado e estridente:

– Atenção, alunos, todos os que ainda não estiverem na ala a que pertencem, por favor procurem a sua professora ou se dirijam ao respectivo grupo.

Marina correu e assumiu seu lugar ao centro da ala, para mais uma vez percorrer toda a Rua Direita trazendo no rosto aqueles ares cívicos que chegavam a assustar numa pessoa tão pequena em idade e tamanho.


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Quase trinta anos depois, Marina se lembra dessa cena, e chora. Não se perdoa por ter faltado com um dever muito mais que cívico – ético! –, ali mesmo nos arredores da Praça da Soledade, depois de adulta. Era dezembro de Natal, e ela visitava os pais, após uns meses sem ir à Vida Feliz – sua Macondo ou Aracataca... Olha através da varanda a rua morta, desprovida de gentes e de sonhos. Para onde teriam ido todas aquelas pessoas? E em que limbo de recordações coletivas se perderam os sons daquelas felizes festas? Marina já recorria à teoria greeniana, imaginando se aquela menina de oito anos, interpretando “Fitas Verdes” no púlpito central da escola, não estaria ainda pairando – numa das multifacetadas fatias do tal pão de forma – por alguma dimensão dentre aqueles ares?... O fato é que ela era toda saudades, e boa parte de seu patrimônio afetivo se formara com o que aprendera com seus mestres de infância – Hannah majestosa entre eles! Como a ex-menina gostava de lembrar aquelas vezes em que, nas visitas vespertinas , ficava minutos inteiros detida ante as telas na parede, em todos os espaços da casa criteriosamente decorada pela pintora primorosa!... Lá, ouvia e fazia leituras de contos adoráveis naqueles livros emoldurados com letras douradas! Também se lembrava, sorrindo triste, daquele adesivo afixado no canto superior direito da terceira porta da estante de vidro... Nele se lia: Quando nós três nos veremos outra vez? Eram dois burrinhos, um de frente para o outro, dizendo a frase em uníssono (risos pueris). Marina também se lembrava de que Hannah sempre lhe servia aqueles opulentos bombons com recheio de licor de cacau. Ela dizia:

– Se há uma coisa que nunca deixo faltar em casa são esses bombons. Não vivo sem eles! – E não vivia mesmo.

Acontecera, porém, que o tempo veio com mão de ceifador, e cortara os elos entre as duas. E as distanciara em largas passadas em geografia e ideologia. Hannah, apesar de artista, era afeiçoada às flores da província, e Marina, tão afoita de alma, quisera correr atrás de suas ideias... E se afastaram, cada qual com suas obrigações impostas pela vida de cada dia, as mesmas que fazem com que se percam os anos. Apenas se cumprimentavam em datas específicas. Quando o marido de Hannah morreu, Marina sentiu muito e telefonou. A amiga mirim – já não mirim – também ligou quando nasceram os netos mais novos de Hannah, para cumprimentá-la e também rememorar aqueles tempos no Pereira Telles!... Afora essas ocasiões, não se falavam. E, pior, não mais se viam, como não pode acontecer aos amigos.

Um dia de maio, no apartamento de Marina o telefone tocou. Era sua mãe:

– Minha filha, você precisa visitar Hannah na próxima vez em que vier aqui. Ela está muito doente! – e narrou a desdita da amiga antiga.

O fato triste na vida de Hannah fora desencadeado ironicamente por uma de suas alegrias menos nocivas que pueris: aquela sua mania de consumir bombons [e doces, doces e doces]... Ela comprava dezenas de caixas deles, e ainda os distribuía entre os amigos. Os mais próximos sempre ganhavam deliciosos chocolates belgas ou aquelas trufas personalizadas... No entanto, os excessos aos amigos não passavam de uns poucos quilos esteticamente ofensivos, mas à gentil Hannah coube uma hereditariedade mórbida, consumada nos açúcares letais do diabetes. Tivera-o seu pai, sucumbira-lhe a mãe, e a ela – antes da vida – fora tirada a luz dos olhos, justamente o grande instrumento para a percepção e a vivência de sua arte!... A mesma e fundamental luz que, segundo a pintora, concentrava a matéria-prima de seu fabrico com as tintas!...

Tristemente Hannah ficou cega, o tempo passou com crueza, e Marina foi vencida pelo medo dos que se acovardam diante das tragédias sem remédio. Mais algumas vezes visitara a cidade, e até lhe telefonara, com muito carinho, mas inconscientemente evitava – ela se envergonha disso! – vê-la, deixando sempre para depois o que deveria ser o maior presente da amizade: a sua presença, com complacência, oferta de atenção e doação. No fundo, Marina temia encontrar Hannah, já que não podia imaginar a artista sem a luz em seus olhos... E, para sua falta de sorte, certa vez em que viajara decidida a ir vê-la, Hannah não se encontrava temporariamente na cidade. E o tempo não perdoou: cometeu sucessivos lances ludibriantes e.... xeque-mate!

Todo o organismo de Hannah veio combalindo, e os longos intervalos de idas à terra da Praça da Soledade trouxeram o cruel escapismo temporal. Hannah morreu, e isso deixou em Marina o arrependimento da fuga pelo medo. Covardemente estivera longe na hora do ocaso da amiga!... Não que fosse insensível às suas dores, mas – resguardada a culpa do temor da adversidade – fora acompanhando aquela cínica intrepidez do tempo, com o esmaecimento da memória e a lentidão dos resgates fundamentais. Como deixou que se perdessem seus nobres ideais do coração?

É madrugada de dezembro, a luz está alta no horizonte de sua Macondo, e Marina se entristece com os espectros irrefutáveis de suas memórias, lânguidas, atordoadas, do jeito como se espraiam pelos ares turvos das cidades-fantasmas...

Por Sayonara Salvioli