quarta-feira, 18 de maio de 2011

Teoria da flexibilidade das verdades






Acredito que toda verdade exija o senso médio da flexibilidade. É preciso maleabilidade em tudo na vida, desde o modo de se encarar algo até o ato de banir o pragmatismo de um conceito aparentemente autossustentável. Não, no mundo nada é uma verdade absoluta. Como o diamante, a verdade é sólida, cristalina e límpida, mas de seu reflexo se originam mil nuances e cores! É como se a tal verdade, apesar de translúcida, fosse um prisma multi-hexagonal, um caleidoscópio de múltiplas tonalidades exibindo, cada qual, uma face da verdade consagrada.


Do mesmo modo, é necessário cuidado na hora de se exigir postura a uma pessoa. Pela teoria da flexibilidade das verdades, no campo vasto (e pouco decifrável) da psique humana, é sempre possível considerar uma falha, um temor, uma impossibilidade de agir por parte de alguém, ainda que você o considere pleno e absoluto, grandioso como uma verdade. Mesmo os seres aparentemente absolutos, se humanos, carregam consigo a marca da flexibilidade necessária e, por isso, têm o direito de titubear e até de se absterem de algo. Inegável axioma. E isso não significa uma espécie de acovardamento. Se alguém simplesmente não agiu naquele instante preciso do jogo vital, talvez tenha sido porque no terreno de sua verdade houvesse uma falha ou um relevo qualquer impossibilitando, na hora do grande lance, o movimento de pernas e pés, que nem sempre acompanham a sua vontade de cérebro e coração, ou seja, a sua genuína verdade. Esta pode estar latente e silente, levemente adormecida no torpor da emoção.


É preciso olhar para dentro do ser humano mais próximo de você e enxergar nele, na sua profundidade, a sinceridade de seus olhos rasos, a grandeza que ele esconde do mundo. Afinal, aqueles que ganharam o seu coração (justo o seu, que é tão exigente) devem necessariamente ser portadores de alguma grande verdade, tão grande que pode se flexionar, elastizar-se e estender-se a pontos diferentes, fazendo brilhar as várias pontas de sua estrela existencial.


Eu creio firmemente nos verdadeiros donos de verdades que elegi segundo meus princípios mais rigorosos, aqueles métodos profundos de análise que permitem enxergar no fundo de alguém seu verdadeiro eu. E é só olhando para a internalidade absoluta dessas verdades originais que habitam a alma do outro que se pode, afinal, crer na solidez cristalina de sua existência real.


Acho que tenho e nutro um coração de poeta na medida em que enxergo, precisamente, a verdade dos que me falam nos olhos. E sigo à risca essa minha percepção poética do humano, pois acho – sem enganosidades – que ela nunca me mentiu aos ultrassensores do ser.


Quer um exemplo fácil para o entendimento simples da teoria que ora defendo? Uma máxima dentre as derivações (amplamente difundidas no universo jovem-cibernético) do pensamento de Shoffstall, que de certo modo prega essa flexibilidade da verdade: o amor de cada um é imensurável; de fato não se pode dimensionar o sentimento de alguém pelo modo como esse alguém o exprime. Muitos não sabem como – ou o quê – fazerem com o seu sentimento. Teoria da flexibilidade das verdades: seu modo de amar e agir não faz necessária interseção com o modo de amar e de agir do outro. Há os que amam com os olhos amantes e profundos da distância idealizada, com a vaguidão de um romantismo quase platônico. Há os que amam com um coração que levita: sentimento nas alturas, elevadíssimos em essência, mas com pouca palpabilidade, apenas com o toque leve de pés de bailarinos(as), sem contudo caminhar sobre ribalta real. Há, entretanto, os que amam com olhos, coração, cérebro, pés e mãos, com todos os malabarismos de um ginasta superpotente; são como polvos das sentimentalidades – alcançam, de todos os modos, e puxam para si, e com tentáculos irresistíveis, o objeto de seus amores. Na síntese, pois, dessa pretensa verdade flexível dos sentimentos, há os que podem amar com tudo o que têm, pois tudo doam, e há os que até amam integralmente, mas “com tudo o que podem”, com o que a tal flexibilidade lhes permite. E o quão indelimitável pode ser o teor de sua verdade!


Na esteira de tamanha maleabilidade, há também o dom flexível da ação. A ação pura e simples do livre correr da vida. As pessoas nem sempre agem, em qualquer campo, com a intensidade primeira imposta pela sua vontade. Tal deriva, creio, da flexibilidade da verdade com tendência para maior ou menor ação perante a vida. A esta ação uns chamam de coragem, de poder de enfrentamento. Isso não quer dizer, entretanto, que não exista uma grande verdade de essência por trás da inaptidão para o agir. Uma inércia não pressupõe forçosamente uma falta de teor ou sentido de grandeza. Pode-se ser grande e verdadeiro, sem contudo se exercer o dom da materialização dos sentidos.


Acerca das verdades silentes, talvez se possa dizer que são aquelas que ecoam mais alto na calada da alma! Vistas em olhares, sensações e atos, são perceptíveis no grau de sua emissão e frequentemente mais retumbantes que brados inflamados.


Há também a questão flexibilíssima do grau de inteireza das verdades. Uma verdade, se não inteira, nem por isso deixa de sê-lo. Há verdades parciais e relativas, talvez na proporção mesma das integrais e absolutas. Verdades podem ser igualmente filosóficas e matemáticas, especulativas e precisas, especialmente por causa da multilateralidade do ser que as sente, vivencia, idealiza ou pratica. Sim, porque o humano é múltiplo, e por isso abarca as diversas concepções do ser. E é mesmo impossível delinear os meandros da complexidade do homem; inefável é a natureza humana.


Finalmente, na esfera quase intangível de uma análise da verdade que se pretende peculiarmente verdadeira ao adentrar a profundeza (multifacetada, diga-se de passagem) dessa definição, mais relativa ainda se faz a flexibilidade de seu julgamento ou entendimento, mesmo porque é difícil apontar as propriedades de uma verdade que, de tão flexível, pode sofrer metamorfizações, atenuações ou perdas em suas características intrínsecas. Afinal, será ou não verdade essa teoria da flexibilidade? Terá ela referências e procedências? Dirá respeito à essência ou acepção do sentido-objeto verdade filosófica? A que se condiciona e o que condiciona? Comparativamente terá as características básicas dentre as demais de sustentabilidade? Terá a plausibilidade das reais cognições ou a imperfeição do ininteligível e do inconcebível? Enfim, terão flexibilidade a proposição e a própria verdade? Louvores, pois, à maleabilidade rizomática da filosofia!...



Por Sayonara Salvioli

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Quem é você no espelho?






Depois de entrar na quarta década, certas dúvidas tomam conta até da mais absoluta das convicções. E uma indagação, de modo especial, parece incomodar os seus dias: até que ponto Mestre Tempo tem dado claros sinais? O cúmulo exasperador dessa dúvida é você constatar que não reconheceu alguém com quem conviveu (muito) há uns quinze ou vinte anos!


Situações-chave dessa sensação traumática, ambas proporcionadas pela novidade das redes sociais:


Primeira situação: Você está no Facebook e, ao atualizar o feed de notícias, vê na página de um amigo de longa data (com quem, junto de outros amigos, você compartilhou momentos inesquecíveis) uma foto atual, com diversas pessoas de seu passado recente (?). É quando você reconhece sorrisos, olhares, fisionomias completas. Só há um rosto ali que você não identifica direito... e pensa: Engraçado, conheço esse rosto de algum lugar... mas de onde? Pensa que pensa, e elastiza os neurônios da lembrança, e procura em seu cérebro a substância que estimula a memória afetiva... e nada! Então, passa a olhar outras fotos similares do mesmo álbum. E, de imagem em imagem, sua mente retrospectiva começa a reunir informações sobre aquele conjunto de rostos da nova passagem contemporânea da lauda de sua existência. E é aí, de dado em dado, que você começa a se lembrar de um traço naquela face, de um vinco naquele sorriso, de um jeito naquela sobrancelha, de um brilho particular naquele olhar... que o remetem a d-e-t-e-r-m-i-n-a-d-a pessoa: É fulano! Seu cérebro reage. Mas seus olhos não consegem entender a decifração daquela imagem!... Meu Deus! É o namorado da sua irmã, aquele que você via todo domingo à noite em frente ao jardim da sua casa, atrás da grade, parado, diante do portão, olhando para ela com cara de bobo. Mas... não pode ser ele! Esse cara (o da foto) está muito, muito mais gordo do que ele sempre foi... Não; ele nunca foi gordo... lembre-se!  E ainda: que visual estranho é esse? Não, decididamente não pode ser ele! Seu ex-futuro-cunhado parecia o Ken da Barbie de tão esguio e arrumadinho: alto, pernas compridas, cabelo de mauricinho e camisas listradas. E esse é um cara desleixado, com pronunciada "barriguinha de cerveja”. Além do mais, tá velho demais pra ser ele! E é nesse momento – trágico para o seu referencial de consciência passada – que você lê na legenda o nome e a descrição... Meu Deus! Valha-me, Nossa Senhora dos destituídos de memória imagética! E você conclui, apavorada e sem qualquer outra saída: É ele, sim! Eu é que não estava reconhecendo...


Segundo impasse: Alguém o adiciona no Face, mas você não reconhece. E não aceita, afinal o FB é só para amigos ou para novos contatos socializadores com pessoas afins – gente que aprecia seus gostos ou partilha de suas vivências, profissionais ligados à sua carreira ou aficionados das artes que você admira ou desenvolve. Mas aquela pessoa parece não se encaixar em nenhuma dessas categorias, tampouco reportá-lo a alguma lembrança efetiva. Então, você resolve não adicioná-la, pelo menos por enquanto. E a deixa em standy-by na primeira janelinha de avisos vermelhos de novidades – a primeira do canto superior esquerdo, a da adição. Por enquanto, você não quer ser amigo daquela pessoa desconhecida. Mas algo não lhe permite deletar imediatamente a nova intrusa digital (será?)... E você diz de si para si: É, também não vou ignorar... Vai que eu conheço de algum lugar!... Passam-se alguns dias e você resolve aceitar , já que ela insiste tanto, outra vez. E qual não é a sua surpresa quando a proponente de amizade vem puxar papo, ao mesmo tempo em que você explora os álbuns de fotos dela. E descobre que a pessoa à primeira vista não-reconhecida é, na verdade, alguém que você conhecia de algum lugar em certo tempo: a casa dos seus pais (também)! Impossível, você pensa. Mas os traços fisionômicos (reconhecíveis, de antigamente) agora batem com os dados atuais de identificação, e você é obrigado a constatar, sem sombra de dúvida, que se trata de Beltrana, aquela pessoa que praticamente morava na sua casa, que sua mãe adorava e que, naqueles dias felizes de convivência, chegou a fazer parte da rotina da família! Então, o leitor pode pensar que tal pessoa – tão familiar – não chegou a ser reconhecida por estar muito estranha, gorda ou velha. Nada disso! Apenas está diferente, com esses atributos novos que passam a tomar conta do rosto dos outros com o passar dos anos... Dos outros? Ou do seu também? Será que, para olhos que estejam além do reflexo de seu próprio espelho, você também se modificou tanto? Terá adquirido vincos no canto dos lábios, o famoso bigodinho chinês, ou, quem sabe, uma ou duas listrinhas (em forma de leve sulco) na testa, enfim, um rosto menos suave, com certo ar inflexível diante da vida?!


Você já havia percebido que o correr dos anos o afasta, por vezes, de pessoas das quais gosta tanto, mas não tinha notado ainda o poder que Mestre Tempo tem também com a sua memória! E é nessa hora que você, leitor, se sente traído por si mesmo naquilo que lhe é mais caro: seu baú de lembranças ternas. E nesse momento parece perceber que não é mais dono de si próprio... Você levou os volumosos álbuns de fotos nas mudanças, de um apartamento para outro, mas não conseguiu infelizmente manter incólume o reservatório completo de suas memórias. Deplorável verdade!


E a sua imagem, perante si e o mundo, terá mudado substancialmente? A julgar pelo estádio do espelho, ao se procurar ou (talvez) se identificar ou projetar ideologicamente no outro, talvez você esteja autoconstruindo uma imagem a partir do que lhe devolve o próprio reflexo... Então, a imagem de seu ex-futuro-cunhado e da sua amiga de adolescência – agora equiparados ao presente das novidades temporais – equivaleria ao seu juízo de valor de si próprio, na atual conjuntura (risos meio apavorados)?... Dá-lhe, Lacan! E, na esteira dessa autocompreensão, a lei do retorno dedutível pode ser o que se afigura como o seu eu, reflexo certo das cores e das dores do mundo. Menos: estaremos como os nossos semelhantes, assemelhados em idade, geração e imagem? Fica aqui a incógnita.


Por Sayonara Salvioli