sábado, 2 de julho de 2011

Cavalgada ao quarto-crescente






Era o vilarejo mais distante do mundo. O chamado lugar em que Judas perdeu as botas, lá onde o vento faz a curva... De tão longe, quase ninguém ousava mais aparecer por aquelas bandas. Mas, na solidão de seus recônditos inimagináveis – e praticamente impalpáveis ao mundo – coisas estranhas aconteciam, na casa do pitoresco...
Segundo diziam os fanfarrões do expediente da lua, domiciliados junto à murada do rio, em Vida Feliz ocorriam coisas absurdas, dessas em que ninguém acredita. A cidadezinha tinha algo mais que praça, capela, coreto e um rio passante. Tinha uma rotina de burro cismante e espetáculos ao luar... Rotina de burro cismante porque cada novo dia trazia só a renovação do sol na manhã. Além dos fenômenos naturais alternando diariamente sol e lua, nada mais acontecia. Era a própria terra das inocorrências.

Mas se coisas deste mundo não afetavam a constante pasmaceira da vila, o mesmo não acontecia com as assombrações... Vida Feliz abrigava gentilmente, na candura de seus recônditos inocentes e pouco habitados, alguns fantasmas simpáticos e, mesmo, camaradas, como nos filmes de boa vontade.

Era o que se dava nos tais espetáculos ao luar... Gentes esbranquiçadas e anuviadas de outro mundo se moviam por todos os lados! Era o caso da mulher-fantasma com cara de lua cheia que aparecia para uma vizinha do cemitério. Berenice morava bem ao lado do portão do campo santo, e via – todos os dias ao anoitecer – um espectro feminino pela janela de sua casinha caiada. E a visita-fantasma formulava seu pedido eterno, em voz de vibrações do além:

– Águaaaaaaaa!

A boa mulher ia até a cozinha buscar a encomenda, e quando voltava já não havia nenhuma pedinte sedenta com a cara na janela. Espantos de Vida Feliz.

Afora isso, ou melhor, essa, havia o barqueiro bonachão que dava remadas noturnas em seu bote verde. Muitos juravam que ouviam o bater do remo nas águas e – na balaustrada junto à beira-rio – chegavam mesmo a escutar, num fio de voz ao longe, sua conversa macia de falastrão, com aquele jeito agradável de intercoloquiar-se com o próximo, conversa quase melódica de causeur de província.

Mas não se trata do primeiro nem do segundo fantasma o objeto desta noite-narrativa. Venho falar dos ares da madrugada trazendo a poeira levantada na estrada por um cavaleiro misterioso... Era o fantasma do Sr. Abud Richa, o morador mais antigo da localidade! Tanto que cem anos após sua morte ainda se podia ouvir o trote de Radamés, seu cavalo de pernas tortas, a saracotear por Vida Feliz.

Em vida, o velho Abud Richa foi um fazendeiro notável – dono de milhares de bois, centenas de cavalos, milhões de árvores e umas sessenta casinhas de colono espalhadas pela propriedade. Também lá, na Fazenda Mirante, mantinha sua família de catorze filhos e vinte e dois netos, além de oitenta e sete empregados herdados à (lamentável) escravaria histórica do lugar. Tinha bens, prole e nome. E, até onde se sabe, o brio de um homem decente. Alguém que vivia, obrigatoriamente, para o latifúndio e tudo que a ele se relacionava: dos louros às mantenças.

Só que o tempo trouxe os ares lúgubres do outro mundo para a sede da Fazenda Mirante, e o velho Abud nem percebeu. A danada de capa preta levou-o para um destino similar aos dos bois quando vão para o matadouro... Diferentemente dos bois, porém, que cismam em todo o trajeto da última viagem, ele nem se deu conta do embuste final. E é por isso que as boas línguas de Vida Feliz não se cansam de matraquear:

– Abud Richa? O fantasma daquele turco passeia a cavalo, toda noite de lua crescente, pela rua da frente!

– E na rua de trás, também.

– E também lá na Vila Roca, em volta do coreto... subindo o morrinho da igreja...

– Decerto nem sabe que morreu.

Adonias Bonito, que de bonito nada tinha – antigo fiscal local do ócio – contava em detalhes que, em toda fase de lua crescente, depois da meia-noite, o velho Abud saía pelo vilarejo saracoteando o cavalo no pó da estrada... Segundo ele, na calada noturna, podia-se escutar perfeitamente o trote de Radamés vindo das bandas da Mirante, lá no comecinho da vila... O caipira afirmava ainda, de pés juntos, que a várzea de arroz, na parte da propriedade que margeava a estrada, estava sempre daquele jeito, tão verdinha, por causa dos olhos do dono defunto que “nutriam a terra”!... Adonias narrava, com voz ofegante, olhos esbugalhados, gestos largos e um sotaque caipira carregado nos erres:

– Se ocê quiser ver é só ficar acordado de madrugada, sentado bem em frente à estação de trem... Primeiro ocê vai escutar o baruio do pangaré chegando: pocotó, pocotó, pocotó... Depois é só esfregar os zoio e... ocê vai ver, bem diante docê, o falecido turco tirando o chapéu panamá e te cumprimentando em frente à venda... É batata, minha fia! Senta na calçada da venda de Dona Alicinha e do velho Borge que ocê vai dar de cara com o pobre... digo, com o rico, o fazendeiro morto que ainda acha que tá vivo! E tem mais... virge santa.. que num acaba aí! A amásia do turcão também acompanha o homem nas lua.... Ainda intur dia eu tava sentado ali do lado da venda do Borge, em frente à varanda do João Bastim, e tive a visão mais espantada de minha vida interinha: a mulher voejava assim, em volta do cavalo dele... vinha e parecia beijar o rosto do Abud... ela parecia leve feito pruma, e os lábios roxim dela parecia até macio!... Ela beijava ele muitas vez e depois saía voando... Acho que a bonitona do outro mundo até me enfeitiçô, pruque – quando dei por mim –, esfreguei os zoio di novo e vi ela bem lá no arto do firmamento, pertim das estrela! Então cê acredita que vi a Marvina sentadinha em cima do quarto crescente? É verdade, bota sentido que ocê vai ver!... Firma as vista bem atenta nas noite da lua crescendo e ocê vai acompanhar o cavargar do turco pela vila intera... até desaparecer na manhãzinha lá perto da figuera de Nhá Ceição... É fato visto e confirmado, criança!

Por Sayonara Salvioli