terça-feira, 3 de setembro de 2013


Nº 1 da fila




Contudo, o acaso – que nunca dá trégua à nossa protagonista – apronta mais uma das suas...

Você, leitor, já conheceu as peripécias de Marina no episódio A MÃO INVISÍVEL DO GUARARAPES. Pois bem, foram narradas as aventuras da protagonista desde que recebeu o telefonema do presente (o afilhado!) até a chegada da feliz madrinha em solo recifense, depois de perder e reencontrar os famigerados óculos da irmã Colette (se não leu ainda, faça-o agora porque as memórias merecem a sua curiosidade!)... Pois bem, a viagem de Marina até Recife, no entanto, com o objetivo único de batizar o seu afilhadinho passou por alguns impedimentos até que finalmente se consumasse. Mas essa história é recheadíssima de acontecimentos e – no dia em que Marina estava correndo para viajar, em momento de pressa e preparativos...


64 números adiante...

Dia de viajar para Recife. Pouco tempo antes do momento de se dirigir ao aeroporto, novo telefonema... Só que era “de poucos amigos”, totalmente diferente do de Vivi... Do outro lado da linha, no entanto, Marina finalmente consegue o “sim” do proprietário do apartamento que ela tentava insistentemente comprar. O cara era duro na queda, mas chegou “no seu preço”. E resolveu fazê-lo – propondo acordo prévio de pagamento imediato de sinal – horas antes de seu embarque para outra cidade... Aff! O que fazer, Marina? Deixar para a volta? Não! Como houvesse mais dois interessados “de botuca” no apartamento, era preciso formalizar logo a situação (arranjando-se tempo Deus-sabia-como no dia da viagem). Na verdade, era caso de se passar logo a escritura. Mas isso também não seria possível... Além do horário apertado para o voo, era uma sexta, quase final de expediente, e o proprietário ainda pedira um tempinho para reunir papelada. Como fazer? Marina pensou três segundos e concluiu que o acordo precisava ser imediatamente fechado com um sinal. Ela estava atravessando a rua quando Vivi ligou:

– E aí? Malas prontas?

– Ah, sim, tudo pronto. Tudo legal.

– Algum problema?

O celular desligou sozinho quando Marina quase foi atropelada pelo árabe do triciclo – com seu possante vermelho sem-teto, brilhante e musical –, bem no meio da Rio Branco. [É claro que Marina nunca seria atropelada por um celta prata, não? Mas não foi mesmo, graças aos Céus, que sempre deram conta de suas providências].

1-      De como Marina mudou as regras do jogo e venceu o primeiro round da viagem



Do outro lado da rua se achava o tal proprietário, do alto de quase dois metros de sisudez. Marina se esticou no salto de 14 centímetros e olhou firme para ele:
– Vamos entrar logo, antes que o banco feche. Uma pena o senhor não haver aceitado um TED.
– Só se fosse um depósito on-line caindo instantaneamente na minha conta. Agora, esperar 24 horas?... Aliás, mais de 72, já que amanhã é sábado... E a senhora ainda vai viajar. Decididamente, não. Tenho mais dois interessados no negócio, senhora.

Marina não quis discutir; não seria prudente. Na verdade, ela havia decidido não fazer nem um nem outro, pois queria garantir a assinatura do vendedor do imóvel quando da transferência do dinheiro [Onde já se viu passar tanto dinheiro num negócio sem papel assinado em tempo real e presencial?].
E o homem era antipático:
– É capaz de não dar tempo.
– Vai dar, sim, meu senhor. Eu tenho sorte.
Com ar levemente irônico, o sujeito se calou, e ambos entraram no banco. Marina levou a mão à cabeça: a fila para o caixa era interminável; ela contou 52 pessoas!
– Ai, meu Deus, vou perder meu voo! – em raro momento de desespero.
E o sujeito:
– O problema nem é a senhora perder o voo: eu que não vou esperar essa fila toda!
Marina precisava agir rápido, e simplesmente disse:
– Vamos até outra agência, um quarteirão adiante. Com certeza, a fila lá deve estar menor.
O proprietário fez cara feia, mas a seguiu. Uma vez lá, pior: 64 pessoas! Expressão de pavor de Marina. Nem daria tempo de voltar à agência anterior, pois o banco já fechara. Mas desistir sempre foi verbo fora do seu glossário:
– Aguarde-me, senhor, que eu vou ali convencer o caixa e o primeiro da fila que preciso ser atendida na frente de todos.




O homem, incrédulo, ameaçou gargalhar. Mas Marina não se deixou intimidar: fez cara feia, esticou-se no salto e levantou o queixo.
Nove minutos depois estava de volta. Ergueu as mãos:
– Aqui está, senhor, o seu comprovante de depósito; confira-o, por favor – passando-lhe também o contrato do sinal. 
O homem, pasmo, estava sem cor. Perguntou, engasgando-se todo, enquanto assinava o papel:
– Mas o que a senhora disse para convencê-los? Como conseguiu???
Ficou sem resposta o proprietário, digo, o ex-proprietário, inteiramente perplexo:
– Nunca vi disso em toda a minha vida.
Ela limitou-se a dizer:
– Nada de extraordinário. Eu precisava fazer o depósito, não precisava? Foi bastante simples: disse três frases, com muita verdade, o que pareceu mexer com a consciência deles, que atenderam prontamente ao meu pedido e ainda me desejaram sorte. [Até hoje nem Vivi sabe que argumentos – em três frases! – Marina usou para convencer dois desconhecidos, ao mesmo tempo em que driblava o interesse e a fúria de 64 pessoas numa fila de fim de expediente de sexta-feira! Ufa!]... Se Vivi descobrir e me contar, narrarei em detalhes aqui no próximo episódio da série Guararapes...



O homem – agora totalmente vencido – assinou o termo, arranjou um sorriso não se sabe de onde, apertou a mão de Marina e disse:
– É um prazer negociar com a senhora.
– O prazer é todo meu, Capitão. Espere pela minha volta.
Dali, Marina correu e se encontrou com sua providente secretária, já no Santos Dumont com as malas. Pegou-as e partiu. Quando ia atravessar o portão de embarque, ouviu um grito:
– Marina, espere!
(...)
E o resto que aconteceu você viu...




Mas quem disse que – depois das aventuras propriamente passadas em Recife (você ainda vai saber) – a volta para o Rio constituiu evento comum? Duvide disso... Digo mais: o feito da vez foi até mais difícil do que ultrapassar 64 pessoas numa fila! Aguarde o próximo episódio, digo... crônica!



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A mão invisível do Guararapes

A mão invisível do Guararapes


– De como Marina ganhou um presente e as peripécias vividas até ir recebê-lo

Marina, ao consagrar-se uma balzaquiana, recebe um telefonema bem no meio da noite de aniversário. 


Do outro lado do fio de Graham Bell, uma voz familiar:

– Amiga, o meu presente é o seu afilhado: estou grávida do João Filipe; escolhi você pra ser a madrinha dele – surpreende Viviane, a eterna Vivi do colegial. As duas não se viam havia uns onze ou doze anos.

Marina fez estardalhaço. Esse sempre foi o seu modo de reagir à alegria, à surpresa, ao susto ou ao pranto. Sua irmã, Colette, sempre diz: “Marina é espalhada”. Mas, além de espalhada e boa amiga, a balzaquiana nº 1 sabe também como ser uma amiga sumida, dessas que sobem para uma nuvem de distância e ficam por lá, provisoriamente, longe de seus entes mais queridos.

Pois bem... Depois do telefonema de aniversário, Marina sumiu das vistas de Vivi mais uma vez. Mas ambas não eram muito normais: Viviane tinha a capacidade de sempre tudo entender e ponderar; era a própria flor da sensatez. Já Marina sempre foi louca mesmo. E as duas sempre se deram harmoniosamente.

O tempo passa: três anos! João Filipe já tem mais de dois anos quando Marina marca finalmente a data do batizado com a amiga. Circunstância meio arrastada, apesar do forte elo das colegas de adolescência. Compromissos, trabalhos, fatos novos e adiamentos. Mas Marina sempre soube quando não podia mais adiar uma situação. Desta vez, não era momento de sair do Rio (ainda menos que das outras vezes não-idas), mas Marina tinha certeza de que não haveria prorrogação depois do segundo tempo. A paciente Viviane pedira até seu documento de identidade:

– É porque preciso apresentar na secretaria da igreja.

Marina entendeu; nem Vivi perdoaria nova protelação. Mas já estava mesmo decidido que viajaria; Marina podia ser enrolada, mas nunca fugira de guerra que fosse sua. Se achava que esse era o seu papel, era capaz até de enfrentar um leão (não duvide!).

Contudo, o acaso – que nunca dá trégua à nossa protagonista – apronta mais uma das suas... E justo no dia de viajar para Recife, acontece algo com Marina que quase a impede de ir (ainda narrarei aqui no blog o episódio, que merece descrição de detalhes)... Mas nesse momento Marina vence o improvável e corre para o aeroporto em cima da hora.

Já no Santos Dumont, encontra-se com sua providente secretária, que lhe entrega as malas (no dia difícil, nem teve como voltar a casa para apanhá-las). Pegou-as e partiu. 



Prestes a atravessar o portão de embarque, ouve um grito:

– Marina, espere!

Era sua irmã Colette, que conseguia alcançá-la. As duas se abraçaram. Com expressão meio exasperada, Colette falou:

– Tive um sonho... Premonição. Vai mesmo viajar?

– Claro, né, Colette! Como não, minha irmã? Como João Filipe poderá fazer Primeira Comunhão daqui a uns poucos anos?

Colette sorriu aquele seu sorriso de superior equilíbrio e falou:

– Só mesmo você, Marina, para pegar um avião, viajar do sudeste ao nordeste do país, para fazer um batizado! – e riu-se. [Afinal, o que fazer se Deus lhe dera uma irmã assim? Ela sabia que Marina iria batizar João Filipe mesmo que fosse em Galápagos ou nas Maldivas. Aliás, quanto mais inesperada a situação, mais chance de acontecer em sua vida].

É claro que a madrinha levou quatro malas para ficar três dias. Tudo bem: as malas eram suas. O que ela não podia levar estava mesmo na bolsa de mão: aqueles óculos emprestados de Colette... Marina é excêntrica, mas Colette... Ah, Colette!... Aquela lá é personal, brava, uma fera! Ai de quem perder algo seu: risco de elotrocução pelo olhar! Deus nos livre!

– Do voo e da chegada de Marina a Recife 




Sentada em sua confortável poltrona, Marina pensou em descansar; nas três últimas noites só havia dormido por prestação, ou seja, duas horas e meia num dia, quatro horas noutra noite, três horas na mais recente. Mas eis que um casal falastrão se posiciona ao seu lado. A mulher a olha e sorri com um sorriso-de-todos-os-dentes. Marina faz cara de antipática [não lhe interessava, depois de tanto estresse, estabelecer vínculos de viagem]! Necessitava mesmo, com todos os seus neurônios, de um sono de ciclos de cinco estágios. Mas a curta viagem nem daria para tanto... A balzaquiana respira fundo, silente (como nunca antes). Passam-se dois minutos... lentos. A estranha sorri novamente. Marina permanece impassível debaixo das lentes dos óculos Emporio Armani. A mulher, claro, puxou – digo, forçou – papo:

– Você também é de Recife?

Marina volta ao seu exercício diário de boa educação, mas uma educação espartana:

– Não.

– Ah, é paulista?

– Não.

– Hummm... já sei: pelo sotaque, é de Brasília!

– Não, senhora; sou do Rio.

Não houve jeito. A mulher queria falar e falar. Marina entregou os ouvidos. E também para o irmão da falastrona:

– Ah, não são marido e mulher?

– Que nada, menina, esse é meu irmão: Aleixinho. Meu maninho, dois anos mais novo; cuido dele desde criança – disse, com o olhar enternecido e uma repulsiva fala molhada.

– A senhora não quis se casar?

– Querer, eu quis, sim... Ah, e como eu quis! Ah, menina, você não conhece a triste história de Marinalva Praxedes. Prazer, menina: Marinalva!

– Prazer. Marina.

– Ora que nossos nomes combinam! Tão bonitinha, com o nome parecido com o meu... veja, Aleixinho!

E Marinalva, Marina e Aleixinho trocaram palavras a viagem toda. Marinalva contou até o motivo do não-casamento:

– ...Aí, minha filha, o meu noivo fugiu com a noiva de Aleixinho... Uma tragédia em família no agreste! Coisa de cordel, menina! – E cochichou: – E me mantive intacta, pra todo o sempre, Nossa Senhora sabe. – Voltando ao alto tom de brados: – Ele também! – apontando o irmão: Aleixinho também é virgem! – Meio avião voltou seus olhares, entre comentários ruidosos, aos virgens cinquentenários.

Marina nem se deu ao trabalho de afundar na cadeira. Já que não pudera dormir, participar do espetáculo era o de menos. Afinal, tudo aquilo não chegaria a três horas. E realmente logo estavam aterrissando no Aeroporto de Guararapes.



A moça bem que tentou se desvencilhar do casal de convictos (ou seria invictos?) na chegada. Mas a quase xará não deixou, claro. Deu-lhe o braço e fez com que seguisse com eles até o desembarque. Na hora de pegar as malas, Marina tentou escapar, mas houve um atraso e as suas não apareciam nunca na esteira...  Senhorita Praxedes aproveitou, então, para tirarem retrato.

– Vamos tirar uns retratinhos pra marcar esse dia?



E foi aí que a viagem de Marina começou a ficar séria... A balzaquiana – a essa altura toda estropiada e mais atarantada que de costume – não teve outro remédio senão fazer as vontades da mulher. Tira que tira foto daqui e dali!... Marinalva fez a coitada até atravessar todo o saguão do aeroporto, já distante da esteira para onde teriam de voltar depois do susto... Sim, um terrível susto! Não é que, de repente, Marina percebeu que não tinha mais os óculos escuros que usava?! Sim, os óculos Emporio Armani... Ai meu Deus, os óculos de Colette, os preciosos óculos que a irmã trouxera de sua última viagem à Europa!... Marina se agitou e remexeu a gola... Sim, a grande gola de sua estilosa blusa preta. Pensou para que tanta e tão exótica gola, toda enrolada, cheia de pano... para os óculos se perderem naquele bolo de tecido?! Sim, uma gola daquelas jamais seguraria uns óculos tão delicados!... E valiosos, pois tinham dona:

– Deus tenha piedade! Estou perdida! Colette vai me matar!

Marina percebera que, ao tirar os óculos para fazer as fotos, não os recolocara... Procurou-os, então, pela bolsa, avidamente, desesperadamente... Ai, meu Deus! Descontrolada, a irmã mais velha – que parecia uma criança amedrontada (mas todos, sem exceção, tinham medo de Colette mesmo!)  – sentou-se no banco mais próximo e começou a revirar a bolsa... Mas... nada de achar os óculos! Só encontrou a embalagem. Aí, então, Marina fez algo que só uma mulher em ebulição de desespero é capaz de fazer: virou a bolsa “de boca pra baixo” em cima do banco! Senhor, só quem viu uma cena assim tem noção do que é o conteúdo de uma bolsa de mulher “ejetado” à vista de todos! Olhos curiosos de todos os lados se voltaram para aquele turbilhão de pequenos pontos, multicoloridos e desorganizados, de todas as formas e tipos: batons, pincéis, canetas, cartões, fragmentos de carteira, moedas, cédulas, molhos de chaves, documentos, celulares, carregadores, câmera, iPod, agenda, microagenda, post-its, termômetro, escova, pente, prendedor de cabelo, perfume, álcool em gel, enxaguante bucal, spray de fixação de maquiagem, estica-cílios, drágeas e... embalagens de óculos! Ufa! Nossa Senhora das necessidades primeiras! Marina chegou a começar a inspirar e expirar com uma constância mais equilibrada quando tateou a primeira embalagem e... encontrou algo! O Senhor seja louvado! Os óculos! Marina abriu-a e pein-pein-pein-pein: eram os seus óculos de grau! Puxa!... Mesmo com toda a necessidade que tinha deles, não se importaria de tê-los perdido para poder achar os valiosos (e imperdíveis) óculos de Colette! Enfim, a coisa estava feia!... Mas havia, ainda, uma segunda embalagem, e esta, sim, era a embalagem Armani; abriu-a como quem abre um tesouro, mas... decepção: estava vazia! O desespero bateu ainda mais forte. E agora, como faria? Que contas iria prestar a Colette, a irmã mais brava do Brasil?! E o pior: desta vez nem poderia fazer como de tantas outras: comprar uma réplica e colocar no lugar sem que a bravíssima percebesse, pois afinal não existia, ainda, daquele modelo novo à venda no país! Ai, meu Deus, estou perdida!

Com os pensamentos em polvorosa, Marina atravessou todo o saguão, ante as exclamações da matraqueira e aquele seu irmão panaca, que ria mansamente de tudo, todo o tempo, sem motivo. Marina estava roxa de raiva! Tudo por causa daquele casal esdrúxulo!... A mulher até que era simpática, coitada, apesar de desregulada... Desregulada, Marina pensou: quem era ela para falar de alguém que não regulava as próprias atitudes?!

Marinalva ajudou a atarantada a atravessar saguão e adjacências, por onde procuraram que procuraram os óculos... e nada! Até que voltassem ao banco, onde a bolsa de Marina ficou abandonada aos cuidados do virgem sorridente, barrigudinho e cinquentão. E foi aí que a protagonista da saga do batismo a distância fez o que se pode fazer nesses casos: sentar e chorar, não sem parar de remexer os seus pertences espalhados sobre o banco e revirando todos os bolsos internos da bolsa!... Foi quando Marinalva a cutucou: Marina levantou os olhos e se deparou com Vivi e o marido, Renato, que haviam chegado para buscá-la.

É claro que a boa e velha Viviane do Ensino Médio deu aquele sorriso de canto de boca... Então, não estava acostumada com o jeitinho peculiar da amiga? Apenas perguntou, já com o riso da placidez:

– O que houve, Marina?

Balzaquiana nº 1 então narra toda a saga da chegada ao aeroporto quando se lembra de que precisava voltar à esteira para apanhar suas malas... Foi quando viu o amigo recente de quase nenhuma fala lhe trazendo gentilmente a bagagem. Despediram-se os três, a falastrona até quieta.

Balzaquiana nº 2:

– Vamos, Marina?

– Claro que não, Vivi! Você me desculpe, sei que você e Renato estão esperando, mas daqui não saio, daqui não arredo pé enquanto não achar os óculos de Colette!...

Renato, pessimista, não disfarçou:

– Não vê que não vai conseguir, Marina? Você perdeu esses óculos! Isso já era!

Mas Marina não se deu por vencida. Quando isto irá acontecer na vida?

– Espere aqui, Vivi, que vou falar com aquele segurança.


Vivi foi atrás.

– Bom dia, senhor. Eu estou com um problema sério: perdi uma coisa muito importante, uns óculos de alto valor simbólico para a minha irmã e...

– Se a senhora perdeu, é difícil achar de novo, dona.
Marina suspirou.

– O senhor tem um supervisor, não tem?

– Tenho. É o Seu Lenivaldo. A senhora vai lá em cima: segundo andar, no setor de resgate, mas lhe adianto: não vi ninguém achar nada aqui hoje, não, senhora...

Marina subiu como um foguete. Lá chegando, dirigiu-se a um senhor de bom semblante:

– Bom dia, amigo! Eu poderia falar com o supervisor do setor, o Senhor Lenivaldo?

– Já está falando, senhora. Em que posso ajudar?


Marina disse, então, o que buscava, enquanto o homem ouvia, quieto, a sua narrativa tresloucada. Ao final, com um tom compassado de voz, ele disse:

– Ah, um óculos assim pretinho, com uns prateadinhos em cima...

Bingo! Marina respirou aliviada. A descrição daquele detalhe – sui generis para um homem – revelava que os óculos de Colette haviam sido encontrados pela segurança do aeroporto. A nossa heroína não sabia como agradecer àquele senhor e a toda a sua equipe pela extrema eficiência e rapidez no resgate de um objeto perdido. Ao avistar, de novo, o objeto precioso de seus temores,


garantiu ao chefe dos seguranças que mandaria um e-mail elogioso para a ouvidoria do Aeroporto, destacando a sua competência e boa vontade.

Marina deixou Seu Lenivaldo muito satisfeito enquanto Vivi a levava rumo a casa para ver seu afilhado. No caminho, Viviane praticamente infligiu uma medida à amiga:

– Marina, você promete que nunca mais vai pegar nada emprestado com Colette?

A trapalhona assentiu com a cabeça, mas seu pensamento já voava longe... Ela só conseguia pensar em como o aeroporto recifense podia ter uma segurança tão eficiente capaz de – em segundos e sem quaisquer vestígios – ser capaz de efetuar aquela sistemática de ação: resgatar para os donos, antes que larápios os vissem, objetos perdidos em brevíssimos ínterins!

O carro encostou na garagem do prédio de Viviane quando Marina fazia seu agradecimento comovido à mão invisível do Guararapes. 





Por Sayonara Salvioli


sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

'A Viagem' sem aportes 

A Viagem (Cloud Atlas, 2012), dos irmãos Wachowski, em parceria com Tom Tykwer, suscita em princípio alguns comentários – ainda que pouco controversos, creio. 




A crítica espontânea do longa

O filme A Viagem – sendo dos mesmos diretores da trilogia Matrix, os irmãos Andy e Lana Wachowski – reafirma a sua estética vanguardista, com linguagem fantasiosa e evasiva, em dimensões interpoladas. No foco de sua concepção, mundos distantes são apresentados – de modo fragmentado – na proposta conceitual de um fio de ligação entre as tramas. 


No entanto, foge ao espectador a compreensão objetiva de tal interligação de histórias paralelas, vividas em diferentes tempos: 

– Em meados do século XIX, o advogado que é intermediário de sua (poderosa) família no tráfico negreiro, mas se arrepende da missão e se torna amigo de fé de um escravo;




– Na década de 30 do século XX, o compositor jovem e genial que se aproxima de um músico já consagrado, porém em seu momento de ocaso. O talentoso rapaz vive uma fuga social, já que tenta esconder sua homossexualidade de uma sociedade repressora. Na convivência com o músico veterano, tem sua obra-prima roubada e sofre ameaças.



– A jornalista idealista (na dinâmica psicodélica dos anos 70), que põe sua vida em risco ao investigar irregularidades na construção inescrupulosa de um reator nuclear;



– Na atualidade, o editor não-famoso que se torna uma celebridade instantânea quando um dos autores da Casa assassina um crítico;




– Na Coréia de um futurista 2144, uma andróide serviçal de um restaurante fast-food é programada para a mecanização até a sua rebelação (e a de seu povo) e redenção;



– Num período pós-apocalíptico (em que a ex-andróide é tida como deusa), tem início uma incipiente civilização, que, na devastação do planeta pós-guerra, retorna à cultura das sociedades pastoris.




Estas são as principais tramas paralelas, embora se cruzem nesse contexto outras personagens e situações, pouco fundamentadas na maior parte das vezes. 



Baseou-se o longa na novela literária, de mesmo nome, do britânico David Mitchell. A propósito, tem se assegurado que o livro é inadaptável para roteiro cinematográfico. Eu já não penso assim, pois acredito ser qualquer obra adaptável, dependendo o seu sucesso, porém, da sensibilidade e da flexibilidade do roteirista em transpor para o campo visual um conteúdo surgido para a estática do papel. Não fosse assim, obviamente, não haveria o que se chama de adaptação – ou seja, transposição (de linguagens, backgrounds, mundos líricos, personagens e peripécias). Em viés paralelo, é claro que existem autores e obras mais ou menos adaptáveis. Exemplo: às vezes, um conto pode ser mais audiovisual do que um romance, em vista da abundância sequencial de conflitos, ante o entremeamento de diversificados "pathos" na extensão da trama. Mas o que se deseja discutir aqui não é a adaptabilidade da novela do escritor britânico, e sim os resultados e as corporificações já audiovisuais da linha delineada pelos cineastas. Com esse enfoque, endosso a crítica geral de que o filme não agrada, afinal ele não consuma o argumento 
com precisão. Sintetizando: faltou roteiro. 



Devo dizer que não acho a ideia geral (dos diretores) um amontoado de intenções sem sentido. Lógico que não. Contudo, as diversas vertentes de concepção da história perderam-se num emaranhado confuso, cansativo e não-amarrado em seus diversos tempos e contextos. Para quem não viu ainda, vale ressaltar que o longa-metragem – de quase três horas de duração – passeia o tempo todo pelas tais  dimensões temporais distintas; tramas paralelas se fragmentam trazendo à cena personagens e contextos (alternados, em rupturas muito velozes) de passado, presente e futuro. Pretendia-se que personagens de um tempo estivessem ligados, em essência, a figuras subsequentes da trama em outros tempos. Assim, a história que se passa nos idos escravagistas de 1800 deveria ter reflexos na década de 30 do século XX; e esta, por sua vez, no presente dos anos 70 ou, quem sabe, numa era cientifizada do século XXI, em plena sociedade de andróides!... Por fim, numa civilização remanescente em período pós-apocalíptico (contraditoriamente num ano 2300): uma sociedade rústica começando tudo de novo... 

E não se estabeleceram, com plausibilidade, vieses de identificação entre esses momentos e personas!



Evidentemente, nada tenho contra narrativas não-lineares; a questão não é esta. No entanto, quando há paralelismo em dramaturgia, necessariamente, devem existir ligações e encadeamentos lógicos, senão perfeitos, para entendimento e unificação dos vários pontos da trama. É preciso que tudo se encaixe, em coesão de fatos e personificações. E isso não acontece, decididamente, no filme dos Wachowski. Não basta a um crítico, cineasta ou espectador ver as performances brilhantes de Tom Hanks, transmutado em diversas figuras intertemporais. Claro, ele é um ator transcendental (para não perder o sentido correlato – risos) e sabe, mesmo, incorporar um cientista ou um selvagem. Porém, atores espetaculares, máscaras faciais hollywoodianas e efeitos estético-conceituais não garantem a compreensão e o alcance da mensagem cinematográfica. Se a proposta dos diretores era mostrar várias vidas (e personagens e contextos) em diferentes pontos de sua reencarnada existência, deveriam ser reconhecíveis esses elos de identidade, em qualquer momento, país ou século. 


Não duvide o leitor / espectador de que é possível unir as pontas de tramas paralelas "viajoras" em tempo e espaço. Sim, todos os fatos e personificações – ainda que em intervalos e situações distantes – precisariam apresentar uma interseção dramatúrgica, um cruzamento de identidades (fossem ou não os mesmos atores). Mas não é o que acontece em A Viagem, onde cada persona se perde no universo geral da trama. E, reitero, não por causa da linguagem fracionada, e sim porque o roteiro não cumpriu a sua função de harmonizar estética e essência. Alguém pode acreditar que funciona, em ficção, uma bela forma sem um bom conteúdo? Pois é o que se dá! As histórias não se unem ao final (no que seria a conclusão do "logos"), e o espectador não tem aquela sensação de empatia com o universo da tela quando sobem os créditos. Contrariamente, quando o filme acaba, as pessoas se despedem dele com a mesma distância conceitual com que assistiram à sua exibição (não raro, vi pessoas conversando(!), bocejando e virando-se para o lado). Obviamente, esse tipo de filme não é feito como se produzem blockbusters, mas boa parte dos espectadores não está – mesmo! – preparada para o convite à reflexão profunda sobre o Cosmos, seus diversos tempos, sociedades e criaturas. E o público que existe de fato com este perfil, sem qualquer dúvida, não se identificou com a proposta, não embarcando na evasão essencial de A Viagem. 


Pontos positivos? Na concepção da trama (não estou falando de produção), vou destacar apenas dois:

1- Os cineastas conseguiram demonstrar na telona a sociedade de massificação da China contemporânea. A mecanização industrial – de reprodutibilidade avassaladora – do país oriental foi claramente retratada na sociedade de clones escravizados, estranhamente inseridos num reino de arrojo tecnocientífico. 




Isso realmente ficou claro, não só em imagens como em falas como esta:

"Bem-vindos ao Papa Song’s!

Nas 19 horas seguintes, anotamos pedidos… Servimos comida, vendemos bebidas… Estocamos condimentos, limpamos mesas e jogamos o lixo… tudo feito seguindo fielmente o primeiro catecismo.

Qual é o primeiro catecismo?

– Honrar o cliente."

[Oportunamente acrescento: foi no momento futurista do filme, em uma Seul do ano 2144, que se pôde reconhecer o traço ficcional básico dos irmãos Wachowski, tal como já expresso e definido em Matrix; é como se eles fizessem o filme inteiro para chegar lá, numa busca de clímax. Mas não há êxtase dramatúrgico, pois o roteiro não acompanhou a intenção]. 

2- Há frações de aproximação com o "mito do cinema total" de Bazin (a arte do real em plenitude sinestésica): no momento do sofrimento da menina da aldeia pós-apocalíptica (visualidade um tanto corpórea) e, principalmente, nas propostas de ficção científica (ambientes, câmaras, procissões, cores e formas num contexto artificial de clones configurados como andróides), reportando-me em átimos a uma "facção" do universo de Eisenstein. Destaque para a cena de Sonmi 451 naquela passarela de ferro, nas alturas, com o seu defensor apaixonado... Você viu?






Afora tudo isso, sobram os reflexos em efeitos especiais, figurino, maquiagem e proposições cênicas de expressão, de acordo com as altas cifras envolvidas no projeto cinematográfico. Sem mais viagens (como o espectador gostaria de empreender), infelizmente!


Por Sayonara Salvioli